Meus caros inimigos

De Ricardo Mota, jornalista alagoano:
Confessemos: todos almejam ser queridos, o que está contemplado na essência humana. Ser querido por todos, no entanto, não parece possível, tampouco recomendável, se dizemos e mostramos aquilo que, de fato, somos.

Ter inimigos é tão natural quanto necessário. Nada deliberado, desejado, planejado, cultivado, nada disso – é apenas inevitável. São eles, assim como os amigos, que balizam a nossa breve intervenção no mundo, o que dele gostamos, pregamos e praticamos. A qualidade humana de amigos e inimigos diz muito sobre o nosso caráter.

Só os homens sem esqueleto, personalidades líquidas ou gelatinosas, haverão de buscar a unanimidade – menos do que burra, falsa. O que, ao final, só descarta mesmo a possibilidade de experimentarem as amizades verdadeiras, que se formam a partir das identidades profundas e pétreas. O hipócrita é alcançado mais rapidamente do que os mancos.

Por outro lado, ninguém se torna alguém, único, irreplicável – com ações, posições e opiniões -, impunemente. Há um custo de se criar a própria identidade, até mesmo se esta construção nos passa despercebida. Os que são eternamente “neutros”, ou assim se anunciam, haverão de viver mortos, se muito.

É claro que ter inimigos, e quando o sabemos, requer um cuidado maior, se isso nos incomoda para valer. Mas “viver é muito perigoso”, definitivamente nos alertou Guimarães Rosa. E se os tais são almas sem limites morais, a vigilância há de redobrar.

Pior, ainda, se o inimigo está próximo, travestido, dissimulado e pronto para o bote certeiro, que pode nos atingir o corpo e, mais grave, a alma. Se nem sempre podemos identificá-lo com clareza, é por um motivo até banal: não somos nós que escolhemos os nossos inimigos – eles é que nos elegem pelo que são ou carregam de tão distinto daquilo que guardamos.

Já que não possuímos o monopólio da virtude – e ninguém o tem -, ao menos podemos votar nulo para a “eleição” dos inimigos: o desprezo há de ser mais salutar. Se não, evitemos alimentar o rancor, não permitindo que o veneno do desamor guie o nosso comportamento, com seu terrível efeito colateral para os que nos cercam e com quem dividimos afetos.

Quando não nos damos conta disso, descartando o que nos sangra por dentro, nascido nas nossas entranhas, tornamo-nos algo mais próximo daquilo que tanto rejeitamos. Será, talvez, a grande vitória do mal-me-quer. Não devemos dar-lhe este direito.

É verdade: os amigos, estes eu os conto nos dedos, até por serem a maior riqueza que alguém pode conquistar na vida. Mas, os outros, eis uma questão: quantos serão eles?

Nunca saberei verdadeiramente. O que também não me incomoda nem me faz viver mirando a sombra que me acompanha. Seria perda de tempo, quando pouco tempo temos para dedicar aos que nos fazem gosto.

Uma constatação, porém, há de se registrar, por importante: se as novas amizades vão escasseando com a chegada da maturidade, as inimizades não conhecem o freio dos anos para que surjam à nossa frente (ou às nossas costas, como é mais apropriado).

Menciono ao menos uma certeza pessoal sobre o tema: se tenho um imenso orgulho dos amigos que fiz ao longo da vida – e como tenho! –, pouco menos posso dizer dos inimigos que colecionei.

Todos me fazem sentir até melhor do que realmente eu sou.

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