Encontrei Cipriano na Rocinha


Janeiro de 2005. A chuva caía insistente. A neblina escondia a beleza do Rio. Já havia visitado o Corcovado, o Pão de Açúcar e algumas praias. Viajar ao Rio de Janeiro e não ir ao Cristo de braços abertos é o mesmo que viajar ao Egito e não ir às pirâmides. Meu objetivo, no entanto, era outro: queria subir ao cume da Pedra da Gávea. Ver, de perto, as inscrições fenícias que dizem existir lá. Mas os pingos engrossavam, e eu via minha aventura ser adiada.

“Já que estou aqui, vou subir a Gávea de qualquer jeito”, disse Paulinho, meu companheiro de viagem. Acompanhado do cinegrafista Sami e do guia Joãozinho seguiram rumo à Pedra Bonita, de onde parte uma trilha para a “cabeça do gigante de pedra”.

Eu e minha irmã ficamos na casa onde estávamos hospedados em São Conrado, numa pequena vila, na Estrada das Canoas. A chuva cessara, mas as nuvens continuavam ameaçadoras. Como não dava para ir à praia, resolvemos passear na Rocinha, que fica a menos de dois quilômetros dali. Antes de sair de Maringá não faltaram recomendações:
“Cuidado com aquela cidade, não saia do centro, não vá às favelas”, recomendou uma amiga.

Não dei importância, pois sempre imaginara o Rio tão violento quanto São Paulo, Belo Horizonte ou Salvador. O que o torna diferente é a exposição na mídia, principalmente na televisão. Claro, existe o tráfico, mas este ocupa seu lugar nos morros.
A Eneida, coordenadora de um projeto turístico em São Conrado, prontificou-se a nos levar até lá. Disse a ela que gostaria de conhecer a Rocinha sob o ponto de vista dos moradores. Queria conversar com eles e descobrir o que rola no dia-a-dia do morro além do tão propalado tráfico de drogas. Partimos. Passamos por um grande shopping.
“Aqui é um dos centros comerciais mais chiques da América Latina” explica Eneida.

Andamos por cerca de um quilômetro e chegamos a uma das entradas do morro. Seis policiais de metralhadoras guardavam o local. Um deles nos cumprimentou com um leve aceno de cabeça. Fomos adiante. Chegamos ao Largo do Boiadeiro, onde funciona uma enorme feira que vende de botão de camisa a galinhas presas em gaiolas de madeira.

“Olhe quanto fio, vai pegar fogo”, espanta-se minha irmã com os “gatos” para puxar energia elétrica dos postes.
Mais adiante, uma pizzaria tão bonita como as que existem em Maringá. As surpresas não param: agências bancárias, supermercados, lojas e muitos vendedores ambulantes. Andamos por uns dois quilômetros em meio aos becos e curvas sinuosas. A Prefeitura do Rio diz fazer coleta, mas não parece. Deparamos com montanhas de lixo. Paramos numa barraca de bolo de milho e pudim de laranja. Um homem de meia idade, moreno de chapéu estilo cangaceiro, nos serve a iguaria. Enquanto degustamos, ele conta que mora na Rocinha desde 1996.

“Já deixei minha casa sozinha quase um mês e ninguém mexeu”.
Segundo ele, ladrão que age na favela tem vida curta.
“Se alguém fizer mal pra gente aqui dentro de graça não fica”.
Pagamos e seguimos até outra barraca, onde uma mulher idosa vendia feijão, milho para pipoca, arroz e uma infinidade de cereais.

“Trabalho na Rocinha há 15 anos. Venho todos os dias de Petrópolis. O único dia em que não pude trabalhar foi numa Semana Santa em que houve um tiroteio entre policiais e traficantes. A gente ajuda a comunidade. É tranqüilo. Não somos um bando de marginais como mostra a televisão. A maioria aqui é gente boa”, diz ela com ênfase.
Mais alguns passos e surge um salão de beleza. Um não. Vários. Era sábado, e todos estavam lotados. Num deles contei 16 mulheres. Uma cansou de esperar pelo cabeleireiro e começou a passar o secador no cabelo.
“Dá pra esperar, não. Tenho casamento. Vou me ajeitar eu mesma”.
O passeio parecia nos anestesiar. Já estávamos no meio da Rocinha.
“Meu Deus! Estou num lugar em que nunca imaginei pisar”, repetia minha irmã.

Fotografei alguns postes tomados pelos ‘gatos’, mas fui alertado por um rapaz para não se exibir muito, pois poderia ser confundido com policial ou mesmo fotógrafo de algum jornal. Paramos numa agência bancária. Saquei R$ 50. Perguntei ao vigia se era perigoso assalto.

“Não, aqui todo mundo conhece todo mundo. Ninguém faz moral. Quem exagerar, sabe que o castigo vem”, disse emendado com a explicação sobre os pontos da favela a ser evitados, onde funcionam as bocas-de-fumo.
Seguimos e me dei conta de que estávamos distante do “outro mundo”. Na favela, tudo é permitido. Carros estacionados no meio da rua. Barracos que se emendam. Fios que se entrelaçam. Homens armados de fuzil pelas esquinas. De repente, surge um fusca adaptado de motocicleta, conduzido por um sujeito de cabelos compridos cheios de tranças. O som estridente assustou minha irmã:

“É na sola da bota, é na sola da bota”. O carro sumiu no beco feito um avião que levanta vôo.
Adiante uma loja de confecções. Na porta, camisetas penduradas com a estampa: “Rocinha 100%”. Entramos. Um simpático senhor chamado Cipriano veio nos atender. Lembrei-me do romance “A Caverna”, de José Saramago, que acabara de ler. O personagem Cipriano Algor é dono de uma olaria na periferia de uma grande cidade e vende bonecos de cerâmica num sofisticado centro comercial.

O Cipriano da Rocinha é bom de prosa. Ele diz que mora ali faz mais de 20 anos e nunca foi assaltado.
“Posso pôr R$ 10 mil no bolso e sair por aí. Agora, lá fora não se pode abusar, não”.
E tem mais: “Aqui, a gente não paga luz nem água”. Ele diz que a favela não é o bicho que se pinta.
“O problema é que a violência aqui fica maior. Se o sujeito morre na favela é bandido. Mas, se morre no centro ou numa zona nobre, foi só um assalto”.
“Mas esse negócio de tráfico que a gente vê na televisão”? – Insiste minha irmã.
“Tráfico é outra coisa. É um grupo aí que mexe com essas coisas. Mas são eles, a gente não se mistura”, disse, quase sussurrando.

Pela simpatia de Cipriano, comprei duas camisetas por R$ 25 e um short de praia por R$ 10. Anoitecia. Hora de ir embora. Não sem antes passar pelo famoso shopping, que fica a menos de um quilômetro da Rocinha.
Lá dentro, as cenas de “A Caverna” afloraram na minha cabeça. O mundo de Cipriano e o centro luxuoso logo ali, onde uma blusa feminina custa R$ 2 mil e um par de sapatos não sai por menos de R$ 3 mil. Ah, um ano depois, voltei ao Rio e subi à Pedra da Gávea.

___________________

Donizete Oliveira
donijornalismo@gmail.com

Advertisement
Advertisement