Memórias compartilhadas

De Isabel Lustosa, no Diário do Nordeste:
televisorAs crianças de hoje em dia não vão ter no futuro o mesmo volume de lembranças compartilhadas que as da minha geração tiveram. E a culpa é da ampliação das opções de canais de TV, antes mesmo da TV por assinatura, e tudo o mais que nas últimas décadas veio preencher o cotidiano das crianças: jogos eletrônicos, internet, redes sociais, mp3, mp4, etc. Apesar do tanto que se criticava a TV na minha infância e adolescência, todo o mundo via TV. A máquina de fazer doidos com elenco de epítetos a ela associados, todos depreciativos, teve um papel central nas nossas vidas. Acredito que quase todas as crianças de classe média brasileira assistiram às mesmas séries televisas, todas elas norte-americanas, claro, como até hoje. “Rin-tin-tin”, “Bonanza”, “Bat Masterson”, “Zorro”, aquele que na vida real era o jovem elegante, fútil e belo Don Diego de La Vega e que, para fazer justiça, punha uma máscara, vestia sua linda roupa preta, puxava sua espada e agia, sempre perseguido pelo barrigudo sargento Garcia e assessorado por um criado mudo (sem trocadilhos), do qual não lembro mais o nome. Do Rin-tin-tin, além da ordem que o menino lhe dava para agir: “Ai-ô, Rintin!”, lembro da chamada de abertura que dizia o nome do menino e do tenente que fazia as vezes de galã da série.
Pois dessas lembranças fazem parte os complementos que tornavam esses programas tão atrativos: as chamadas de abertura e o jingle, coisas que, de tanto ouvirmos, grudavam na mente e fazem com que até hoje muita gente repita sem pestanejar aqueles textos, por vezes longos. Das músicas que acompanhavam séries a mais marcante foi a do Bat Masterson: “No Velho Oeste ele nasceu,/ e entre bravos se criou,/ seu nome em lenda se tornou,/ Bat Masterson, Bat Masterson”. Tenho a impressão que o público original do Bat Masterson, ao contrário do público do Rin-tin-tin, não era o infantil. O sujeito usava um punhal disfarçado na bengala e era todo sedutor. Se não me engano foi ali que vi, pela primeira vez, a cena do cara tirar a capa e por no chão para que a bela mocinha, ao descer da carruagem, não pisasse na lama que cobria todas as ruas das cidades do Velho Oeste.
Sem letra, mas de grande impacto musical era o tema de “Bonanza” de uma velocidade empolgante. O mesmo não posso dizer da série que hoje me parece, era caretíssima, com aquele velho pai fazendeiro e seus três filhos muito dos sem-graça: um alto, gordo e meio bobo; um juvenil cheio de arroubos; e um galã sério e ponderado. Na infância mais remota, tinha “O menino do circo”, do qual não guardo quase nenhuma lembrança. Soube que o protagonista se tornou depois baterista dos Monkees, uma banda inventada pela indústria fonográfica para competir com os Beatles. Talvez a sensação que me tenha ficado como resto de lembrança daquela série foi a de um certo desconforto com a vida no circo, instável e cheia de elementos esquisitos aos quais se associava aquela música interminável e repetitiva que anima os espetáculos circenses.
Acho que gostava mais das séries familiares, como uma em que o pai estava sempre chegando do trabalho a um lar impecável, com seu terno que trazia nas mangas, na altura do cotovelo, uma espécie de remendo redondo que me impressionava muito. Tanto quanto me impressionava o fato da empregada da família, creio que se chama Heizel, ser uma velha e simpática senhora branca. “Perdidos no Espaço” veio um pouco mais tarde, mas ficou na lembrança pela inesquecível imagem do robô agitando seus braços mecânicos e gritando “perigo, perigo!” e pelo impagável Dr. Smith. Este era um vilão com trejeitos afeminados, tão engraçado que se tornava simpático. Graças, talvez, à voz do dublador que foi considerado pelo ator americano melhor que a própria. Das séries que nos chegaram um pouco depois da infância e que, talvez por isso, não tenham deixado marcas tão fortes havia as protagonizadas por animais: por uma cachorra, “Lassie”; por uma égua, “Minha amiga, Flica” e por um golfinho, “Flipper”. Não acompanhei “Jennie é um gênio”, nem “A Feiticeira”, que devem ter marcado o pessoal um pouco mais novo que eu.
Acho que as crianças do Rio e de São Paulo tinham um outro canal disponível – a TV Excelsior? -, pois meus amigos daqui tem um repertório que incluem lembranças de séries que eu não assisti em Fortaleza. É o caso do seriado japonês “National Kid”, onde a terra era invadida por alienígenas chamados de Incas Venusianos e que tinham uma palavra de ordem “Auika!”. O seriado tosco, recordado por tanto cariocas e paulistas, parece que só fez sucesso no Brasil, não conquistou a garotada do Japão. Também não passava na TV Ceará – Canal 2, a série “Ivanhoé”, que tinha uma música que dizia: “Ivanhoé/ Cavaleiro justiceiro, Ivanhoé…”. O engraçado da pessoa ter passado a vida dizendo e cantando “Ivanhoé”, assim mesmo como se escreve, foi descobrir na idade adulta que os americanos que criaram a série inspirada no romance de Walter Scott, falam esse nome de uma maneira completamente diferente: Áivanrôu. Outra que também não passava em Fortaleza era a série brasileira “Vigilante Rodoviário”, cuja canção tema dizia: “De noite ou de dia/Firme no volante/Vai pela Rodovia/O bravo Vigilante”.
O carioca Mario Bag, que nasceu e se criou na Tijuca, já procurou de toda maneira achar uma gravação que marcou sua infância. Era a abertura de uma série que também não passava em Fortaleza chamada “Comandante Meteoro”. Talvez porque do alto do maciço da Tijuca, ele se considerasse o próprio, ao repetir de cor, como repete até hoje, o texto épico de apresentação do herói: “No alto de uma montanha que domina uma grande cidade, fica o quartel-general de um homem que se dedica a defender a liberdade e a justiça. Um herói da guerra que nunca deixou de combater os inimigos de sua pátria. Um valoroso homem, que luta incansavelmente contra o mal e sempre o vence. Jet Jackson, o Comandante Meteoro!”.

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