Dois goleiros de outro mundo

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoEm tempo de futebol, permitam-me falar dele. Admira como na minha infância pobre e desprovida de meios, ele tenha significado tanto. Vivendo em lugares perdidos deste mundo, sem poder vestir, como as crianças de hoje ainda no colo dos pais, uma dessas belas camisas de times, sem campo, sem técnico, sem escolinha, sem nada, o futebol marcou profundamente a infância minha e de meu irmão Eraldo. Assim como marcou a infância de muitos moleques pobres e ignorantes, como nós, de qualquer outro esporte. Para nós a chance de algum esporte chegava até ao futebol e morria aí.
A nós dois coube a sorte de assistir ao nascimento do primeiro time de futebol de Jales. Pelo menos, primeiro com um mínimo de organização: com diretoria, plantel, uniforme, cores próprias, escudo e até hino. Foi fundado pelo professor Paulo, nosso diretor do grupo escolar, única escola da cidade. Naquele fim de mundo, os professores vinham todos de fora, alguns até de cidades grandes. O querido professor Oscar Aidar, do meu 2° ano, centroavante e ídolo, por exemplo, viera de Sorocaba. Assim nasceu a Associação Atlética Jalesense. Com esse nome não existe mais. Como tantos clubes de outras cidades, foi substituída por novas agremiações de nomes parecidos. Mas do time original, aquele do começo, de atletas que a gente conhecia e com quem podia conversar, desse posso dizer: “Meninos, eu vi”.
Quem estava na missa das sete, na Catedral, sábado passado, certamente nem percebeu o nome que citei na hora de lembrar os falecidos. Pedi a Deus pelo descanso eterno de Oberdan Cattani, falecido na noite anterior aos 95 anos. Foi goleiro do Palestra Itália na transformação para S. E. Palmeiras.
O que li sobre ele, nestes dias, conta sua capacidade de agarrar a bola com uma só mão. Ex-motorista de caminhão, tinha mãos enormes. Cansei de ouvir isso na minha infância. Foi o motivo que levou o Eraldo a se tornar palmeirense. Eu pensava tratar-se de lenda daqueles ignaros tempos. Mas até hoje ainda se fala.
Oberdan é daqueles atletas cujo nome se identifica com o clube. Fez do Palmeiras a sua casa. Defendeu-o por 13 anos. Saiu por causa do diretor Paschoal Giulano. Magoado, não falava disso. Permaneceu palmeirense até o fim da vida. Morava numa casa de portões verdes, perto da sede do clube.
No dia 10 de maio de 1969, um sábado, o Santos jogou aqui contra o Grêmio de Esportes Maringá. Eu trabalhava na Catedral antiga. Após a missa, domingo cedo, ali, na frente do antigo Grande Hotel, conversei com o goleiro Gilmar. Perguntei-lhe por que encerrar cedo a carreira, como se comentava. Sua resposta: “Sabe, padre, minha vida tem sido concentração, viagem, jogo. Só isso. Tenho dois filhos. O primeiro eu nem vi crescer. Perdi parte da sua vida. O mais novo eu quero acompanhar desde pequeno”. Gylmar (com y) dos Santos Neves faleceu ano passado, em 25 de agosto. Tinha 83 anos.
Exemplos de fidelidade ao próprio clube e à família, Oberdan e Gilmar são inesquecíveis na história do futebol brasileiro. Foram dois dos mais extraordinários goleiros não deste país, mas do mundo. Representam um tempo em que o futebol era tido como coisa de desocupados. Provam que havia quem o praticava com dignidade e idealismo.
Era o dito futebol romântico. Muito diferente do mercenarismo que vemos nos dias atuais.

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