Os descartáveis

padreorivaldo Sábado passado, depois de noticiar que na Faixa de Gaza o conflito entre palestinos e israelenses tinha produzido 1000 mortos em dezenove dias, o âncora de um noticiário de TV comentou: “O mundo inteiro sente-se horrorizado com tanta violência. Enquanto isso, no Brasil, 3000 pessoas são assassinadas mensalmente e ninguém fala nada. O Brasil produz três Faixas de Gaza por mês e achamos uma coisa normal”. Dita dessa forma, a afirmação nos golpeia com a brutalidade de um soco na cara. Contudo, o quadro é mais assustador.
O Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, registrou em 2012 (último dado disponível) 56.337 assassinatos no país, cifra jamais atingida anteriormente. Quer dizer: 4690 pessoas morrem, todo mês, de morte “matada”. Essas, as conhecidas. Mas longe dos grandes centros as informações são deficientes. Terá havido comunicação de todas? Digo o registro, não esclarecimento ou solução. Nossa realidade possivelmente seja bem pior do que a descrita.
Onze de cada dez brasileiros razoavelmente informados consideram inseguros bairros como Jardim Ângela, Cidade Adhemar, Cidade Tiradentes e Capão Redondo, em São Paulo. Ou Morro do Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Complexo de Manguinhos e qualquer favela do Rio. Ainda que seja gente honesta e trabalhadeira a imensa maioria dos moradores dessas áreas. A explicação é que São Paulo e Rio dispõem de jornais nacionais. O que ali acontece logo ribomba pelo Brasil e pelo mundo afora. Hoje, porém, o homicídio deixou de ser privilégio das cidades grandes. Ele encontra-se em qualquer lugarejo de cinco ou seis casas. Para o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, pesquisador do tema, nos últimos dez anos, houve mais assassinatos no Brasil do que “em todas as principais guerras […], incluídas as do Iraque e Afeganistão”. É assustadora a barbárie a que chegamos.
No final dos anos 40, moramos no “sertão”, onde a gente era pouca e o mato, muito. Talvez por isso, raro era sabermos de alguma morte violenta. Como a do homem surpreendido numa tocaia e derrubado do cavalo com um tiro só. O bandido acabou de matá-lo no chão, a golpes do porrete que tinha preparado para aquela selvageria. Ninguém soube a identidade da vítima ou do homicida. Nem o que teria provocado o estúpido ato. Aconteceu na estrada entre Jales e Pontalinda, onde poucas vezes rodava um fordeco resfolegante. Por ali passavam cavaleiros, carroças e pessoas a pé. Até hoje, o nome “Pontalinda” me traz à lembrança o infeliz acontecimento. Ao longo de dias, foi o principal assunto dos pobres ignorantes que éramos, perdidos naquele ermo sem contato com o resto do mundo. Eu tinha oito anos. Por noites seguidas, na cama, demorou-me o sono a chegar.
Na agitada vida que hoje levamos, a morte não assusta mais nem bebê de colo. Os pequenos a assistem como desenho de TV ao vivo. Ou como um filme repugnante, que a vida encena todos os dias.
Eis aonde nos conduziu um mal compreendido liberalismo, que advoga o “direito” de praticar tudo o que dá na veneta do cidadão, desde que lhe assegure prazer ou lucro. Se o objetivo da vida é só gozá-la sem responsabilidade, então tudo o que vier será válido. Mesmo que implique na morte do outro. O outro virou um descarte inútil.
Até que a morte resolva mudar de ideia e vir para cima da gente.

Advertisement
Advertisement