Reminiscências de um escritor

Assembleia homenageia Laurentino Gomes com título de Cidadão Benemérito do Paraná

Ao receber o título de cidadania benemérita do Paraná, em 4 de novembro passado, o escritor Laurentino Gomes falou um pouco sobre sua infância em Maringá, de corrupção e de história. O blog reproduz a parte principal do discurso:
“Bem, estou cercado de amigos, parentes, a minha família, entre eles a minha mãe, Maria Ascenção Gomes, a minha mulher Carmen, os meus irmãos Edno e Sérgio, a minha cunhada Salete e a minha sobrinha, ex-Miss Maringá, Sara, mas também pela minha confreira, meus confrades da Academia de Letras, colegas jornalistas, escritores, professores, historiadores, que se deram ao trabalho de deixar as suas atividades um pouco mais cedo, para vir me prestigiar neste final de tarde chuvoso, de uma quarta-feira. Este momento é especialmente emocionante para mim, não apenas pelo título, dessa enorme honraria que o Estado do Paraná me confere, mas também porque foi neste Plenário, nesta Casa, mais precisamente atrás daquela bancada, onde na época, a imprensa e os jornalistas posicionavam-se, que comecei a minha carreira jornalística. Então, é nesta Assembleia Legislativa do Paraná que foram, de fato, plantadas as sementes que germinaram em mim e que hoje me trazem aqui como escritor, como jornalista, para receber este título de Cidadão Benemérito. Portanto, poderia dizer que parte do meu DNA está aqui na Assembleia Legislativa do Paraná. Desde que comecei a minha carreira, como escritor, depois de escrever essa trilogia sobre a história do Brasil, lancei-me em uma fascinante jornada de aulas, palestras, feiras literárias, sessões de autógrafos e outros eventos. Pelos meus cálculos, já rodei mais de 200 cidades brasileiras nos últimos oito anos, falando sobre história do Brasil. Em todos os lugares em que vou, faço questão de identificar-me, como cidadão de Maringá em primeiro lugar e do Paraná. E, para minha surpresa, observo que a reação das pessoas realmente é a melhor possível, todo mundo tem uma boa referência da minha cidade, uma boa referência desse belo e próspero Estado do Paraná, mesmo aquelas que nunca tiveram – as raras pessoas – o privilégio de passar por aqui.
Vim ao mundo no começo da madrugada de 17 de fevereiro de 1956. A casa do meu avô, situada na Vila Sete, perto do Estádio Willie Davids, em Maringá, foi ali que eu nasci, em uma madrugada de terça-feira de Carnaval – se a minha mãe não me desmentir, porque ela é uma testemunha privilegiada do acontecimento. E a cidade em que nasci tinha sido fundada apenas há nove anos, plantada na fronteira do avanço da agricultura no Brasil e era um lugar muito simples, cujos pioneiros levavam uma vida difícil, mas repleta de grandes sonhos. Nasci no exato momento em que o trem Ouro Verde partia da Estação de Maringá rumo a Ourinhos, interior de São Paulo. O trem era a nossa principal ligação com o resto do mundo e chegava até Água Boa, o distrito rural de Paissandu, onde passei a minha infância ao lado de meu pai, João Inácio Gomes, mineiro de Brasópolis e da minha mãe Maria, paulista de Presidente Prudente e dos meus três irmãos Sérgio, Jaime e Edno. Em Água Boa levávamos uma vida austera, distante de tudo, pautada pelo trabalho árduo na roça, pelas missas, terços, procissões aos Domingos e Dias Santos.
As notícias chegavam pelo rádio de pilha, na voz de Heron Domingues, o Repórter Esso, minutos antes de começar a Voz do Brasil. Foi pelo Repórter Esso que soubemos do lançamento do satélite artificial Sputnik, em 1957, cujo formato serviria de inspiração para a Catedral de Maringá, idealizada pelo Bispo Dom Jaime Luiz Coelho e projetada pelo arquiteto José Augusto Bellucci. Quatro anos mais tarde, Yuri Gagarin, primeiro ser humano a entrar em órbita, anunciaria que a Terra, vista do espaço, era azul. Também pelo Repórter Esso tomamos conhecimento da conquista dos primeiros títulos mundiais pela Seleção Brasileira de Futebol, em 1958, 1962; a renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, em 1961; o assassinato do Presidente John Kennedy em 1963; e do Golpe Militar em 31 de março de 1964. No final dos anos 60 voltamos a morar em Maringá, depois de uma breve passagem por Pérola, ali na região de Umuarama, Xambrê e Altônia.
Em Maringá moramos em uma casa de madeira, situada na Zona 5, esquina das ruas Santa Joaquina de Vedruna com Teixeira de Freitas, perto do Horto Florestal. Como não havia pavimentação, nos dias de chuva era preciso enfrentar o barro, e muitas vezes eu carregava um segundo par de sapatos em uma sacola, que eu calçava ao chegar no asfalto, evitando aparecer na escola, no trabalho, com os pés enlameados. Como éramos uma família de escassos recursos, tive que trabalhar para ajudar nas despesas de casa desde os 14 anos. Trabalhava durante o dia e estudava à noite, sempre escola pública. Primeiro no Byington Junior, depois no Brasílio Itiberê, e por fim no Instituto Estadual de Educação. Como a deputada Maria Victória citou, muito bem, fui jardineiro, sapateiro, torneiro mecânico – eu e o Lula – empacotador de supermercados, auxiliar de escritório, cartorário e bancário. Ganhava pouco, mas fiz de tudo um pouco e aprendi muito. Em 1976 vim para Curitiba, onde cursei Jornalismo na UFPR. Casei-me, tive dois dos meus quatro filhos aqui na Capital Paranaense, iniciei a carreira de jornalista e a futura carreira de escritor, na bancada da imprensa da Assembleia Legislativa do Paraná. Nos anos seguintes morei em Belém, no Pará; em Recife; em Brasília; em São Paulo, onde vivo hoje, e agora estou aqui, de volta. Surpreso, desconcertado, emocionado com a homenagem que o meu Estado do Paraná me presta.
Nesses anos o Paraná mudou muito, evidentemente, mas eu também mudei. Durante 30 anos exerci Jornalismo, como repórter e editor de jornais e revistas, e há alguns anos decidi usar essa longa experiência de redação para escrever livros de História do Brasil. O resultado foi a Trilogia 1808, sobre a fuga da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro; 1822, sobre a Independência; e 1889, sobre a Proclamação da República. Agora, o que eu nunca imaginei, nem mesmo nos meus sonhos mais delirantes, é que esses livros pudessem se tornar best sellers e ganhar inúmeros prêmios, como as Estatuetas do Prêmio Jabuti de Literatura. Aliás, a título de curiosidade, gostaria de lembrar que graças a essa trilogia eu também sou um orgulhoso Cidadão Honorário do Estado do Piauí, e da cidade de Itu, de São Paulo, onde moro atualmente. Quem poderia prever que livros de História do Brasil tivessem a repercussão que esses livros tiveram? Isso num País em que, infelizmente, o índice de leitura é muito baixo. As estatísticas mostram que o brasileiro lê, em média, menos de um exemplar de livros per capita por ano. É muito pouco, comparado, por exemplo, com a Alemanha, onde esse índice chega a 30 exemplares per capita por ano. No meu entender esse fenômeno encontra explicação na riquíssima e transformadora experiência política que o Brasil vive nas últimas três décadas. São mais de 30 anos de exercício da democracia representativa republicana, sem rupturas, sem ameaças de rupturas. Isso nunca aconteceu antes na história do nosso País. É a primeira vez que todos os brasileiros estão sendo chamados a participar da construção do futuro de forma coletiva, num ambiente de liberdade de expressão e de fortalecimento das instituições civis, e nesse cenário é absolutamente fundamental estudar História, porque uma sociedade que não estuda História – e isso a deputada Maria Victória citou no seu pronunciamento – não consegue entender a si mesma, porque desconhece suas próprias raízes, os caminhos que a trouxeram até aqui. Estudar o passado é fundamental para entender o presente, mas também para construir o futuro, de uma forma mais organizada, mais estruturada do que fizemos até hoje. É um erro achar que História tem a ver apenas com o passado. A História tem a ver com presente, e principalmente tem a ver com o futuro. A História se projeta nessas três dimensões do tempo. Acredito que os brasileiros estão olhando o passado em busca de explicações para o presente. As dificuldades atuais são enormes e, às vezes, parecem até insuperáveis.
Ao ler o noticiário temos razões de sobra para acreditar que o Brasil é mesmo um país corrupto, injusto, violento, dominado por gente cínica e desonesta. Mas, apesar disso, acredito no futuro do Brasil. Acredito que vivemos num momento decisivo, e que a grande tentação que paira no nosso horizonte, hoje, é justamente o desânimo, a falta de esperança, e é por isso que é sempre bom observar o presente com certo distanciamento pela perspectiva da história. Se olharmos o Brasil de uma perspectiva histórica, há razões para otimismo. Otimismo moderado eu diria, mas, sim, de otimismo. Nesses últimos dois séculos, desde a chegada da Corte de Dom João ao Rio de Janeiro, em 1808, passando pela Independência em 1822, pela República em 1889, o Brasil obviamente falhou na tarefa de realizar coisas importantes. Como prover educação para todos, incorporar os ex-escravos na sociedade produtiva na condição de cidadãos de pleno direito; reduzir a pobreza; distribuir oportunidades e riquezas. Ou seja, formar cidadãos. São questões que ainda hoje nos desafiam. Por outro lado, o simples fato de termos chegado até aqui como um País grande, integrado, de dimensões continentais, relativamente tolerante no aspecto político, racial e religioso, nos fornece sinais de esperança em relação aos problemas do presente. A própria existência do Brasil esteve ameaçada várias vezes.
Na época da Independência e do primeiro reinado, as chances de divisão do território em guerras civis e separatistas eram enormes. Esses desafios foram superados, às vezes ao custo de muito sangue, de muito sacrifício. Portanto, as vitórias, as dificuldades do passado podem iluminar nossa jornada em direção ao futuro. Para mim é um grande orgulho ajudar os brasileiros, especialmente os leitores mais jovens, a gostar de história. Tento demonstrar com meus livros que a História do Brasil, além de importante, pode ser, também, divertida, interessante; mas, nunca, jamais, ser banal. Ser um escritor de best sellers é mera consequência da reportagem bem feita, bem pesquisada, bem apurada. Portanto, a minha contribuição ao estudo da História do Brasil é de linguagem. Na pesquisa dos meus livros uso a técnica de reportagem. Procuro observar os acontecimentos e os personagens sob a ótica do jornalismo. Isso me dá uma liberdade de observação e de narrativa muito grande, e também, obviamente, explica os subtítulos dos meus livros, esse recurso bem humorado é usado com o propósito de provocar o interesse do leitor. Como se faz, por exemplo, num título de capa de revista ou em uma manchete de jornal. No texto combino análises mais profundas dos acontecimentos e personagens, com detalhes pitorescos, surpreendentes, bem humorados. Tudo isso ajuda a atrair e a reter a atenção do leitor, porque ninguém precisa sofrer para estudar História. Para terminar, gostaria de repetir algumas palavras que usei no meu discurso de agradecimento pelo Título de Cidadão Benemérito de Maringá, que me foi concedido pela Câmara Municipal em 2013.
Existem várias maneiras de se avaliar e reconhecer uma cidade ou um Estado. Pode ser pela sua história, pela sua arquitetura, pelo seu urbanismo, pela sua economia, pelos serviços, atrações, pela qualidade de vida que oferece aos seus moradores. O Paraná é reconhecido por tudo isso e muito mais. Mas, em minha opinião, um Estado, tanto quanto uma cidade, uma região ou um País, vale mesmo é pelo cidadão, pelas pessoas que o ajudam a formar ao longo de sua história. Nessas últimas décadas o Paraná tem sido um poderoso foco irradiador de transformações e inovações, que tanto têm contribuído para renovar, oxigenar e diversificar a vida econômica, social e cultural deste nosso Brasil como um todo. Modestamente, também me incluo nesse fenômeno. Nesses muitos anos na estrada tenho encontrado paranaenses em todos os cantos do Brasil e do mundo. São empresários, políticos, arquitetos, juízes e advogados, publicitários, engenheiros, professores, jornalistas, escritores, muitos e bons escritores, historiadores, artistas, homens e mulheres públicos, uma infinidade de gente de todas as profissões e vocações, e em todos eu reconheço o mesmo jeito, o mesmo sorriso, o mesmo olhar de esperança, a mesma coragem e a mesma determinação que sempre encontrei aqui. O Paraná, de um modo profundo e definitivo, ajudou a formar, a forjar o que sou hoje”. (Foto Pedro de Oliveira/Alep)

Advertisement
Advertisement