Chega de politicagem com a nossa saúde

ricardo barros

De Cristiane Segatto, no site da revista Época:

O que o ministro Ricardo Barros prometeu à elite dos médicos. E por que devemos fiscalizar com lupa os novos donos do poder

Nas últimas semanas, a elite dos médicos de São Paulo estava animada com o convite recebido pelo cirurgião Raul Cutait, do Hospital Sírio-Libanês, para ser o novo ministro da Saúde. A empolgação foi tanta que logo começou a ser construído um ministério hipotético estrelado pelos melhores técnicos. O projeto teve vida curta. Restou uma aula do que é a política.
Por melhores que sejam as intenções de quem ocupe um ministério de tamanha importância (o maior orçamento da Esplanada), é preciso saber conciliar os interesses das forças políticas que vão garantir governabilidade – principalmente num momento de corte de despesas e adoção de medidas impopulares. Há um ritual de negociações, uma aproximação, um “beija-mão” que precisa ser respeitado antes de qualquer coisa.
Nesse quesito, venceu o político profissional Ricardo Barros (PP-PR), eleito deputado federal cinco vezes. Antes mesmo de assumir o cargo de ministro, ele tratou de conhecer um grupo de profissionais influentes que gostariam de ver Cutait no comando da Saúde. No domingo (15), foi ao Hospital Sírio-Libanês ouvir um grupo de profissionais influentes que, entra governo, sai governo, continua próximo do poder.
Barros foi recepcionado pelo cardiologista Roberto Kalil Filho e deixou uma boa impressão. Prometeu aos médicos cumprir uma agenda de encontros regulares em São Paulo para discutir com eles propostas para a saúde.
A falta de interlocução técnica constante com o Ministério da Saúde nas últimas gestões era uma queixa recorrente dos profissionais da área e das universidades. Eles desejam participar da criação de propostas para um setor cronicamente subfinanciado.
“Se o ministro for bom gestor, tiver verba e souber ouvir e governar junto com os profissionais da saúde e das universidades, ele não tem como ir mal”, disse Kalil a Época, sobre o encontro com o novo ministro.
Segundo os participantes da reunião, Barros chegou discretamente e demonstrou tranquilidade. “Ele disse que, apesar de não ser médico, construiu uma boa estrutura de saúde quando foi prefeito de Maringá”, afirma a cardiologista Ludhmila Hajjar.
A classe médica deseja contribuir em vários assuntos, entre eles as análises técnicas que deveriam anteceder a adoção de qualquer medicamento ou procedimento no Sistema Único de Saúde (SUS). “O Brasil é péssimo nessas análises de custo-efetividade”, diz Ludhmila.
“Não queremos cargos e, sim, participar no aconselhamento do governo”, diz ela. “É preciso haver uma reengenharia no SUS para que ele seja capaz de dar conta não apenas da atenção básica, mas também dos pacientes crônicos de doenças cardiovasculares, câncer e tantas outras”.
Convidado para a reunião, o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB) Florentino Cardoso não compareceu porque estava nos Estados Unidos. “Estamos otimistas com a mudança de governo”, afirma. Cardoso diz esperar que o ministro consiga fazer um bom time técnico.
“Nos últimos anos, o Ministério da Saúde nunca aplicou o orçamento total destinado à área”, diz Cardoso. “Pensar em corrupção zero na saúde seria utópico, mas esperamos que os recursos sejam usados de maneira ética, em benefício da população brasileira”.
Ninguém precisa ser médico para aplicar bem os escassos recursos da saúde. Precisa ser honesto e bom gestor. O maior desafio brasileiro nessa área é o subfinanciamento. Sempre foi e, no atual cenário de corte de gastos, será ainda mais.
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988 é uma das maiores conquistas sociais do país. Devemos defender o SUS com unhas e dentes, principalmente quando o desemprego leva tantos brasileiros a depender exclusivamente dele.
Defender o SUS é também exigir inteligência e transparência na destinação dos recursos. Chegou a hora de perder o medo da matemática, exigir que as contas sejam explicadas e evitar a falácia de que é possível dar tudo a todos. Não é.
Mesmo num cenário inatingível de corrupção zero, o orçamento do SUS não seria capaz de oferecer a todos os brasileiros todo e qualquer recurso inventado pela indústria da saúde.
Escolhas têm que ser feitas. É fundamental que sejam bem-feitas. O Brasil precisa se inspirar nos países que sabem fazer escolhas e arcar com a impopularidade delas. É o caso do Reino Unido, uma nação que faz análises técnicas sérias antes de adotar qualquer medicamento ou procedimento no sistema público de saúde. O ministério da Saúde brasileiro faz isso, mas ainda timidamente. É preciso que essa cultura contagie todas as esferas de poder.
Enquanto o rigor técnico não falar mais alto que os favorecimentos políticos, nossa saúde vai continuar no atoleiro em que se encontra. Os governos fingem que é possível dar tudo a todos para não perder eleição, o povo se anima com o canto da sereia de programas fragmentados que prometem dar mais isso, mais aquilo e o funil que limita o acesso à assistência fica cada vez mais apertado.
Se o momento é de sacrifícios para todos, é hora de fiscalizar com lupa os novos donos do poder. Ninguém aguenta mais sustentar a politicagem com a própria saúde.

Advertisement
Advertisement