Sangue proibido

doação

Por João Almeida Moreira, no Diário de Notícias, de Lisboa (Portugal):

O caso é verídico mas os nomes são fictícios a pedido dos intervenientes: António é um cidadão português emigrado no Brasil há dez anos. Olívia é brasileira e casou com António há 12, quando ambos ainda viviam em Portugal. Eliane é professora assistente da escola de Lucas, o filho de 6 anos de António e Olívia já nascido em solo brasileiro. Numa tarde, Eliane afligiu António e Olívia, e todos os outros pais da escola de Lucas, com um pedido desesperado via rede social:

“Um familiar meu teve um acidente de carro na madrugada passada, precisa com urgência de sangue.” António e Olívia não hesitaram e na manhã seguinte já estavam no hospital indicado por Eliane. Porém, na triagem final antes da doação foram vetados. Justificação: terem vivido na Europa.
Surpreendidos, António e Olívia tentaram saber os motivos para o seu sangue ter sido recusado numa ação de solidariedade. O Ministério da Saúde do Brasil esclareceu que, de facto, há uma portaria de 4 de fevereiro de 2016 que prevê “59 critérios para a inaptidão definitiva à doação de sangue para a encefalopatia espongiforme humana e suas variantes, causadores da doença de Creutzfeldt-Jakob”, a célebre doença das vacas loucas.
“Desta forma”, lê-se na portaria do Ministério da Saúde, “é definitivamente excluído como doador o candidato que se enquadre numa das seguintes situações: tenha tido diagnóstico de encefalopatia espongiforme humana ou qualquer outra forma da doença; tenha história familiar da doença; tenha permanecido no Reino Unido e/ou na República da Irlanda por mais de três meses, de forma cumulativa, após o ano de 1980 até 31 de dezembro de 1996; tenha permanecido cinco anos ou mais, consecutivos ou intermitentes, na Europa após 1980 até os dias atuais”.
Foi este último critério que impediu a doação de António e Olívia e torna o sangue da maioria dos imigrantes europeus no Brasil proibido por lei nos hospitais e hemocentros locais. Segundo dados do site oestrangeiro.org, cerca de meio milhão de pessoas naturais de países da Europa vive no país, dos quais mais de metade são portugueses (perto de 280 mil), seguidos dos contingentes italiano (73 mil) e espanhol (60 mil).
O Ministério da Saúde do Brasil, país que nos últimos anos foi notícia por causa de epidemias de dengue, chikungunya, zika e febre amarela, afirmou não considerar excessiva a sua posição em relação à doença das vacas loucas. Segundo o ministério, o país adota critérios semelhantes aos de organismos de EUA e Canadá e sublinha que “tal conduta não tem nenhum carácter discriminatório”. O Brasil tem imagem internacional, que adora preservar, de país tolerante e hospitaleiro, ideia reforçada durante as organizações do Mundial de Futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016.
Se todos os europeus são então potenciais portadores da doença das vacas loucas, conclui-se que os ministérios da saúde europeus estão a ser negligentes ao permitirem doações de sangue entre os seus cidadãos? Responde o Ministério da Saúde que é “da competência de cada país estabelecer os seus critérios e as suas políticas de saúde pública, de acordo com suas realidades locais”.
O Ministério da Saúde, cujo ministro Ricardo Barros se notabilizou por dizer que as filas de espera nos hospitais resultam de “pessoas que inventam doenças” e que os homens recorrem menos aos hospitais do que as mulheres “porque trabalham mais”, não considera contraproducente criar barreiras à doação de sangue de europeus ou de brasileiros que tenham vivido na Europa, mesmo tendo em conta que segundo reportagens da BBC Brasil e do Jornal do Comércio, publicadas no último dia internacional do dador, a ONU considerar “ideal” uma taxa entre 3% e 5%, mais do dobro da população brasileira dadora.
Mas o que mais preocupa António e Olívia é temer que se numa emergência o seu filho Lucas necessitar de uma doação, de acordo com a lei brasileira não poderá receber sangue dos próprios pais.

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