Médicos respondem a Barros

A classe médica articula um protesto, no próximo dia 3, uma quinta-feira, contra o ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP), que dias atrás declarou que “médico tem que parar de fingir que trabalha”.
Enquanto isso, nos aplicativos de mensagens circulam as considerações de um cirurgião geral ao ministro da Saúde, qualificado de arrogante, como uma resposta às suas declarações. Eis a íntegra do texto:

“Excelentíssimo Senhor Ministro da Saúde Ricardo Barros,
O senhor tem total razão..
Nós Cirurgiões,
Fingimos trabalhar quando estamos de plantão em uma Emergência do SUS e recebemos um paciente acidentado grave em choque hemorrágico, necessitando de várias bolsas de sangue para reverter o choque, e o banco de sangue nos informa que só há 2 bolsas para o hospital inteiro, quando muito, e nós temos que nos virar para salvar esta vida.
Fingimos trabalhar quando recebemos dois acidentados ao mesmo tempo, ambos graves, chocados e com nível de consciência rebaixado, ambos com necessidade de intubação imediata, temos equipe médica suficiente, equipe de enfermagem suficiente, mas apenas um laringoscópio e um respirador disponível no setor de reanimação, e precisamos escolher quem é intubado de imediato e quem espera sua vez em hipoxemia e com menos chances de sobreviver.
Fingimos trabalhar quando recebemos um paciente com traumatismo cranioencefálico grave necessitando de tomografia de crânio urgente para avaliar gravidade, mas o tomógrafo do hospital está quebrado há meses e sem previsão de reparo.
Fingimos trabalhar quando temos que transferir este paciente para outro hospital para fazer a tomografia, mas somos informados que o hospital só dispõe de uma única ambulância para o hospital inteiro e esta única ambulância está inoperante por falta de manutenção, falta de combustível e falta de motorista, que está sem salário há 3 meses e pediu demissão.
Fingimos trabalhar quando temos 6 pacientes graves necessitando de leito de UTI e apenas dois leitos disponíveis nesta UTI, e precisamos escolher quem vai pro local adequado e quem fica do lado de fora com mais chances de morrer por falta de cuidados intensivos.
Fingimos trabalhar quando estamos atendendo um baleado grave de tórax necessitando de um dreno de tórax, mas somos informados que não há dreno de tórax disponível, e precisamos improvisar com outro tipo de tubo pro paciente não morrer de restrição respiratória.
Fingimos trabalhar quando operamos um paciente de urgência e ao término da cirurgia precisamos colocá-lo na UTI, mas somos informados que não há vaga, e somos obrigados e encaminhá-lo a um leito de enfermaria normal numa enfermaria lotada com a enfermagem sobrecarregada ou num leito extra no corredor, improvisando uma estrutura mínima de monitorização, e torcemos pro paciente sobreviver à cirurgia feita apesar do pós-operatório totalmente inadequado, pois só nos resta torcer (por mais que tenhamos certeza que fora da UTI as chances dele são mínimas).
Fingimos trabalhar quando diagnosticamos um câncer em um paciente humilde, ele é incluído na fila para ser atendido em um hospital de referência de tratamento de câncer, mas demora tanto pra chegar sua vez que quando chega o tumor já avançou tanto que não há mais tratamento curativo possível, e na primeira consulta este paciente já é encaminhado a tratamento paliativo (quando não morre na fila).
Fingimos trabalhar quando diagnosticamos uma doença de tratamento cirúrgico eletivo e encaminhamos este paciente para o SISREG para que ele consiga entrar na fila do Ambulatório de Cirurgia de algum hospital, e falamos para ele que este é o caminho para que ele consiga ser operado, mesmo a gente sabendo que ele ficará em uma fila sem fim e que ele levará talvez anos para conseguir ser operado, isso se ele de fato conseguir entrar no SISREG.
Fingimos trabalhar quando precisamos suspender toda a programação cirúrgica prevista para o dia, porque a Autoclave usada para esterilizar o material cirúrgico usado está novamente quebrada por falta de manutenção. E dessa forma aqueles pacientes humildes há tanto tempo na fila aguardando cirurgia terão as suas adiadas por mais um tempo.
Fingimos trabalhar quando temos que suspender várias cirurgias previstas porque o ar condicionado do centro cirúrgico está novamente com defeito, e portanto deixando a sala em condições insalubres e totalmente inadequada para uma cirurgia segura, que deve ser em ambiente resfriado e com a temperatura controlada para evitar infecções.
Fingimos trabalhar quando tentamos oferecer a melhor cirurgia possível para um paciente, mas o aparelho de videolaparoscopia do hospital está com o insuflador quebrado ou com a ótica infiltrada, e precisamos então fazer uma cirurgia aberta por uma técnica ultrapassada, na contramão do resto do mundo, e levando o paciente a ter um pós-operatório com mais dor, com mais tempo internado e mais chance de complicações.
Fingimos trabalhar quando mais uma vez tentamos oferecer o que há de melhor em cirurgia minimamente invasiva, mas antes da cirurgia começar somos informados que não há clips laparoscópicos, não há endogrampeadores laparoscópicos, não há pinças para o bisturi harmônico ou o bisturi harmônico está com a fonte queimada por falta de manutenção. Recorremos novamente à cirurgia aberta por técnica ultrapassada e pós-operatório doloroso, longo e com mais complicações.
Fingimos trabalhar quando durante uma cirurgia delicada somos obrigados a usar um fio de sutura inadequado porque o fio correto não tem no hospital, comprometendo diretamente a segurança e o resultado da cirurgia executada.
Em suma, enquanto os governantes constroem para si verdadeiros palácios para abrigar as suas sedes de governo, ministérios, fóruns e tribunais, constroem verdadeiras pocilgas IGUAIS ÀS SUAS CARAS para abrigar os hospitais e unidades de saúde que cuidarão da população, em projetos inadequados e repletos de erros, gambiarras e falta de recursos básicos.
E o senhor, no auge da sua arrogância de quem não sabe o que é ser médico, não sabe a responsabilidade que é exercer a Medicina, não sabe o que um médico precisa passar no seu trabalho no serviço público por falta de investimentos de vocês, acaba falando todas as suas barbaridades que somos obrigados a ouvir. Se o senhor fosse médico, ou se você e sua família precisasse ser atendida no SUS que você acha que conhece, não falaria as besteiras que você tem falado. Aprenda a ouvir os profissionais de saúde que estão na linha de frente do SUS antes de sair disparando tolices desnecessárias.”

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