O fim de um povo paranaense

Caboclos descendentes de índios e escravos muçulmanos, que habitaram o Norte e o Noroeste do Estado, foram dizimados pela colonização e esquecidos pela história oficial
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Texto e fotos: Donizete Oliveira
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Foto Donizete Oliveira
Capelinha cercada por pedras lembra “Cemitério dos Caboclos” nas margens da rodovia, em Paiçandu

“Vanceis póde renegá do meu modo de caboco,/pensando qui eu seja um loco qui vive a fala de asnera/ mais eu protesto a linguage desse povo tão servage,/qui tanto e tanto martrata minha terra brasilera”. Estes versos estão no livro “Meu Brasil brasileiro, poemas caboclos”, do poeta Ary de Lima, publicado em 1975. Do livro, que denuncia a “morte” da poesia cabocla, restam poucos exemplares em sebos e bibliotecas da região.
A sina se repetiu com os caboclos que habitaram o Paraná. Os sutis, povo que vivia em comunidades espalhadas pelo Norte e Noroeste do Estado, desapareceram. Eles chegaram à região por volta de 1910 – antes dos pioneiros brancos – e permaneceram até a década de 1960. Mas a exemplo dos índios, que só agora começam a aparecer nos livros didáticos, ficaram fora da história oficial do Paraná.
A maioria desconhece a trajetória daqueles caboclos de baixa estatura, de fala mansa e pausada, descendentes de negros e índios. Que construíam casas de pau a pique cobertas com tábuas de embira, criavam porcos em mangueirões e plantavam para subsistência.
Cemitério
Nas margens da PR-323, que liga Paiçandu a Cianorte, há uma capelinha cercada por pedras. O local, denominado “Cemitério dos Caboclos”, é o que restou dos sutis na região.
Toda véspera do Dia de Finados, o local serve de pauta para os meios de comunicação. Mas os relatos não passam do cemitério. Nem chegam a dizer que naquele local havia uma comunidade com mais de 300 sutis. Para resgatar a história desse povo exótico, a reportagem recorreu a depoimento de pioneiros e aos livros de história regional. Pesquisa difícil, pois quase nada existe sobre o assunto.
O “Álbum comemorativo do 25º Aniversário de Emancipação Política de Apucarana”, do professor Haroldo Victor Lôr, publicado em 1969, um dos poucos que retratam os sutis, foi encontrado pela reportagem entre descartes de bibliotecas. No livro de Lôr, o primeiro prefeito de Londrina, Joaquim Vicente de Castro, diz que os sutis vieram do Sul do Paraná, de uma localidade chamada Assungui de Cima, antiga colônia de Curitiba.
Segundo Vicente de Castro, os sutis eram sonhadores do “campo da vaca branca”, paraíso terrestre, que imaginavam situar-se no Oeste paranaense. “Entraram por uma estrada chamada Boiadeira e, para seu sustento, levantavam casebres rústicos, criavam animais e plantavam roça”, descreve. Passaram por Marilândia do Sul, “Mata Sede” – atual Jandaia do Sul -, Paiçandu, Cianorte e Japurá.

Muçulmanos
O engenheiro Marcos Luiz Wanke, membro do Instituto Histórico e Etnográfico Paranaense e pesquisador do assunto, afirma que os sutis vieram de Castro, Sul do Estado, e seriam descendentes dos malês, escravos muçulmanos que fizeram a “Revolta dos Malês” na Bahia, em 1825.
O movimento foi sufocado pelas autoridades, e a maioria dos revoltosos fugiu para outras províncias, sobretudo Rio de Janeiro. Em Castro, acrescenta Wanke, os malês fundaram a “República da Sinhara”, hoje patrimônio histórico permanente com nome de fazenda Capão Alto. Eram escravos de aluguel, portanto, decidiam sobre o próprio destino. “Os que vieram para o Paraná não participaram da revolta baiana, mas eram da mesma etnia”, explica.

Caboclo “aré”
O pesquisador diz que do Sul do Estado, os caboclos se deslocaram por trilhas e encontraram índios guaranis. O encontro teria gerado o caboclo muçulmano “aré” localmente conhecido por sutil. De acordo com Wanke, esse encontro foi documentado pelos historiadores Sebastião Paraná, Telêmaco Borba e Antonio Salomão Faris Michaele.
Os sutis extraíam sal das cinzas de uma palmeira comum na outrora mata paranaense. Eles tinham até moeda própria, o “peso hueco”, utilizada nas compras e vendas de porcos, que criavam em extensos mangueirões. Segundo Wanke, eles ajudaram a desbravar a região. Em 1779, o trecho entre os rios Ivaí, Paraná e Tibagi pertencia a Castro. Em 1872, passou a pertencer a Tibagi – de onde em 1934 desmembraram-se Londrina e outras cidades do Norte do Paraná. As trilhas utilizadas pelos sutis e índios facilitaram as idas e vindas de Norte a Sul do Estado.

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