Sintomas de uma febre tropical

ilustra

Por Airton Donizete:

O Brasil é um país singular pela sua condição geográfica e seu povo. Mas, ao mesmo tempo, desigual, dominado por uns poucos que se acham donos de tudo e de todos. Com isso, sofremos com velhos problemas, que se arrastam e nos ameaçam. Um desses problemas que nos perseguem são as tentativas de golpe de Estado.
Volta e meia, somos surpreendidos pelos mesmos golpistas de plantão. Basta uma nuvem cinzenta no horizonte, que eles se unem para derrubar o presidente da vez.

Uma rápida consulta à história e nos certificamos de que as tentativas de golpe nos perseguem desde 1945. Getúlio Vargas, embora fosse um ditador, foi pressionado a deixar o cargo. Mas o velho Getúlio esperou o momento certo para voltar ao poder. E voltou eleito em 1951. Fez um governo nacionalista, que desagradou o andar de cima. Carlos Lacerda apressou o golpe com o suposto atentado da rua Tonelero, no Rio de Janeiro. Pressionado, Vargas se suicidou, adiando o golpe, que viria em 1964.
O marechal Henrique Teixeira Lott garantiu a posse de Juscelino Kubitschek, em 1956. O problema não era o simpático mineiro pé de valsa, diamantino; eram os ares democráticos, que se manifestam como assombração para parte dos habitantes do andar de cima. Jânio Quadros se elegeu, em 1960. Seu vice era João Belchior Marques Goulart, o Jango. Com a renúncia de Quadros, em 1961, Jango ficou na corda bamba, assume, não assume.
Não fosse a intervenção de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, Jango não assumiria. O governador gaúcho comandou a “campanha da legalidade”, com apoio do general José Machado Lopes. Jango assumiu, mas teve de ceder a um parlamentarismo claudicante imposto pelas forças do andar de cima. Conseguiu revogá-lo num plebiscito, mas em 1964 foi deposto. O anúncio das reformas de base, um conjunto de medidas sociais que desagradaram às forças conservadoras, detonou a bomba, cujo estopim já estava aceso.
O fim da ditadura civil/militar anunciava novos tempos. Que vieram com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 1985, e a promulgação da Constituição em 1988. O que me motivou a escrever este artigo foi uma revista Manchete que comprei num sebo. De julho de 1989, ela traz um artigo do jornalista Carlos Chagas, que denuncia uma tentativa de golpe em 1989. O título “O golpe em marcha” fala de uma tentativa de adoção do parlamentarismo para impedir uma possível vitória de Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva, naquele momento potenciais candidatos a presidente com uma plataforma à esquerda.
Chagas diz que a tentativa de golpe, na época, era comandada, vejam, por PMDB e PSDB. Escreve ele: “De vez em quando ele ressurge. É como essas febres tropicais que a gente pega no mato. Passam-se meses, às vezes anos, até que, sem mais aquela, voltam os calafrios, a temperatura sobe, e a vontade é de ficar deitado […]”. “Dá pena assistir a gente do PMDB enfiada nisso até o pescoço […] tucanos da mais nobre estirpe de repente defenderem o sistema parlamentarista”.
Mas o golpe parlamentarista não veio. Surgiu o candidato Fernando Collor, aparentando uma imagem moderna de um garoto ensabonetado que acabara de sair do banho. Deu no que deu. Atual o artigo de Carlos Chagas. A imberbe democracia brasileira volta a conviver com a tentativa de golpe. Voltamos a sentir os sintomas da velha febre tropical.
O governo da presidente Dilma Rousseff deixa a desejar em vários aspectos. Como seus antecessores, ela não fez as reformas necessárias. Seu governo perdeu-se no emaranhado político em meio a uma aliança espúria. Que fortalece seus inimigos, deixando distante parte do PT que prioriza as conquistas sociais. Mas nem por isso deve ser apeada do poder. Impedimento não é para governo que a gente não gosta; é para governo que comete crimes.
Não vou entrar no mérito das tais pedaladas fiscais. Pode até ser um ato impróprio, mas não justifica impedimento. Governadores de Estado e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também o praticaram. Há uma espécie de complô comandado por PMDB e PSDB, como em 1989, para derrubar Dilma. Como hoje, eles se denunciam sozinhos. Os que tramavam um golpe na época, querendo estabelecer o parlamentarismo, haviam votado no presidencialismo dando mais um ano de mandato para o então presidente Sarney.
Tudo vem à tona novamente. Os atores são outros, mas o enredo é o mesmo tramado pelo andar de cima. Que a sociedade organizada seja um remédio definitivo para acabar de vez com os sintomas dessa febre tropical. Chega de dor de cabeça e calafrios.
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(*) Airton Donizete, jornalista, professor e mestre em comunicação

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