A duvidosa paz do morto

Por João Batista Leonardo:

Vivi horas místicas, em clima de reflexão, no velamento de um amigo. Lá, umas pessoas chorosas se consolavam, outras meditativas e intrínsecas, muitas contentes querendo se mostrar e a maioria preocupada em assinar na lista de presenças, para se valer diante da família.

O morto ali, com o rosto pálido exposto, de mãos entrelaçadas como em oração, frio, duro, envolto em panos finos, flores e maquiado para ficar mais bonito. Desafortunadamente recebendo lamento, dó e hipocrisias, como últimas homenagens. Piorou quando a voz forte de alguém que, se dizendo “amigo”, embora nunca o tivesse convidado ao menos para um café, teceu comentários, a seu ver, com falta de verdades, aproveitando o último instante daquele infeliz, para se valorizar e dar vazão à sua necessidade de aparecer.
O esquife caro, bem enfeitado, as velas acesas, as coroas de condolências ornadas em flores, dão asas à imaginação e é bom divagar nela.
Agora, para o morto tudo acabou, em pouco tempo o sepultarão e até a luz lhe faltará. Foi um homem da lei, defendeu tantos e acusou outros, teve vitórias e derrotas. Na família teve acertos e desacertos passíveis de condenações e elogios. Foi querido por tantos e odiado por muitos. Sempre rebateu os seus defeitos e procurou as vitórias.
As oportunidades se foram, o fim chegou e nada mais pode fazer. Agora, para o morto, não seria hora de fazer a análise e avaliações dos seus tempos vividos? Lembrar-se dos erros cometidos, decepções, enganos, devaneios, vitórias na busca da felicidade?
Ele não poderia estar conjecturando assim?
Estou morto, um dia quando nasci, pessoas em volta contentes e sorrindo, falavam belezas e eram bem diferentes das de hoje. Pensando bem, não pedi a ninguém para nascer, nem na minha família, naquele lugar, com esta cor, com meu sexo, com este corpo e neste país. Então minha vinda me foi uma imposição. Imposição, tantas vezes questionada, nos momentos de desespero ou de intensidade emocional, e até neste instante final e desesperançado, não encontro respostas. Por que nasci? Enfiaram-me os costumes, o clima, a organização social e, na continuidade tive que desde novo, aceitar as formas e projeções futuras condizentes. Se eu tivesse nascido numa outra parte do mundo, minha criação seria outra, bem como a continuidade e a interpretação da razão e da fé. Teria vivido outros valores e circunstâncias, não teria sido melhor?
Na continuidade fui à escola, empurrado para o aprendizado com exames, vestibulares, sacrifícios, na busca da chamada formação profissional.
Na profissão, mais uma vez recebi imposição de direitos e deveres, punições, disputas injustas, com vitórias e derrotas. Na busca do dinheiro, este maldito metal que compra consciências, suborna poderes e engrandece os medíocres, nem sempre agi na ética e na honradez.
Foi-me dado a libido, o sexo, o poder de procriação e também característica poligâmica. Mais uma vez fui cerceado da liberdade; a religião e a sociedade organizada me impuseram a monogamia, indo contra minha própria natureza humana que é poligâmica.
Vivi sentimentos e o amor me levou ao matrimonio com uma mulher e nova imposição; viver com ela a vida toda, nas alegrias e nas tristezas, como se o amor fosse sentimento definitivo e imutável. No início éramos um só, amigos, amantes, porém, indo os tempos, houve desgaste e, por tempos tolerei a falta do aconchego e da sexualidade plena, em nome da honradez.. Somos mutáveis e a busca de outros prazeres também sexuais, me marginalizou frente à sociedade, aos filhos e aos amigos. Procurei a satisfação em aventuras e no fim, conclui que só troquei as dificuldades. Realmente um pedaço de tempo me imposto com severidade.
Os filhos e filhas vieram com esperanças, possivelmente o grande feito e consolo nessa vida. Eles são alegrias e prazer pleno, justificam sacrifícios e valem o amor perene. Os netos são a continuidade.
O trabalho árduo cotidiano, a manutenção da família, os sacrifícios na busca do dinheiro e o stress me tiraram a saúde.
É consenso religioso termos uma alma imortal e que perpetuarei na minha. Coisa que ninguém viu e que tantas vezes a invoquei e não apareceu. Para salvá-la, eu teria que ter tido fé e amado o próximo como a mim mesmo. Então, analisando meu agido, não tive a melhor vivência, não fui tão crente e nem o mais honesto. Posso não ir para o céu e ser jogado no inferno. Bolas, não pedi para nascer e não gosto de julgamentos, pelo menos os da terra são duvidosos, como homem da lei participei deles. Não quero isso.
Comi muito, fui obeso e a doença me emagreceu. Tive suor cheiroso, ronquei, tive mau hálito, fiz uso de desodorantes e perfumes, agora estou apodrecendo. Tive morte demorada e sofrida. Neste corpo vivi todo tempo, não gostando integralmente dele. Não tive escolha. Desgraça minha, só porque um dia me impuseram a vida.
Daqui a pouco, vão me levar para o túmulo, minha morada final. Como é de cimento, a terra não comerá minha carcaça; somente os bichos habitantes em mim, o farão. Lá na escuridão, se não o roubarem, terei este lindo caixão como meu único bem material. Funesta realidade para quem explorou na vida, tolerou os valores morais e, com sacrifício, juntou dinheiro.
Nasci sem pedir, num lugar que não escolhi, com uma forma corporal que não gostei. Impuseram-me costumes, tradições, deveres e direitos, que, no conjunto dos dias vividos, tive muito mais dissabores e sofrimentos do que prazeres. Deram-me a liberdade de decisão, mas também me rodearam de proibições.
Aceito o julgamento e a punição, unicamente porque fiz filhos, num mundo doloroso e fiz neles o que fizeram em mim. Uma pena, então que venham as chibatadas. Afinal, fui humano.
Imaginar que mortos possam conjecturar é pura divagação e muito longe da lógica. Na verdade, o morto velado, se não vivenciou em grandezas, quando nasceu ele chorou e as pessoas sorriram; agora muitos choram e, com certeza, na piedade de Deus ele sorri. Viveu com algum mérito no servir, contestou, foi esposo, pai e profissional. Sofreu as punições de um mundo exigente e oportunista. Participou de tantos julgamentos e discutiu conceitos. Agora num plano superior, julgado na benevolência divina, com certeza se juntou aos esperançados.
Enquanto aqui, na última referência, pessoas constritas em procissão, acompanhavam seu corpo até à última morada, entoando o canto: “Segura na mão de Deus e vai…”.
E nós seremos diferentes?
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(*) João Batista Leonardo é médico em Maringá. Artigo originalmente publicado no Jornal do Povo.

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