Aconteceu num grande avião

Por João Batista Leonardo:

A vida nos impõe grandes surpresas até difícil de imaginar no passar dos tempos, por vezes agradáveis e outras dolorosas.
Numa dessas inimagináveis peças, a vida me pegou.

Há dois meses, eu estava voando da Cidade do Panamá para São Paulo, num grande avião com mais 280 passageiros, com duração cerca de 7 horas. Após o jantar já meio sonolento ouvi vozes chamando por um médico. Como soe acontecer com certa frequência em voos internacionais, fiquei quieto na esperança de que houvesse no avião outro colega para atender o chamado, visto a maioria das vezes, as ocorrências médicas serem de competência de médicos clínicos. Eu como ginecologista gostaria ficar em segundo plano. Mas que nada, não tinha ninguém e ainda os companheiros de Lions Clube que viajavam comigo, logo me revelaram.
Lá fui eu para a primeira classe atender a emergência. Encontrei um rapaz de cor, em torno de 30 anos, soltando sangue espumoso pela boca e narinas. Devidamente protegido com luvas limpei aquele sangue e o coloquei deitado. Ele estava frio, suando e muito pálido. Mucosas descoradas com 140 batimentos cardíacos e pulso fino. Estava quase inconsciente sem responder aos estímulos. Por sorte apareceu uma enfermeira e começamos infundir soro fisiológico o que melhorou o pulso.
O diagnóstico provisório foi de anemia aguda por hemorragia provavelmente gástrica.
Fazendo o atendimento médico possível daquela situação, percebi grande deficiência. Era preciso de imediato a transfusão de sangue, diagnóstico definitivo e tratamento adequado. Ali não era possível. Percebendo a situação chamei o chefe de cabine e disse que o caso era grave com risco de morte iminente e que eu precisava falar com o comandante. Por determinação de lei aérea internacional o pedido me foi negado. Então mandei informar ao comandante que era necessário aterrizar com urgência numa cidade com competência para o atendimento, sob pena de, em algum tempo, termos um cadáver no avião. Atendo-me ouvi a comunicação do comandante aos passageiros que, por ordem médica desviaria a rota e dentro de 50 minutos estaria pousando em Manaus, contando com a compreensão de todos. Lá chegando, o paciente estava vivo e foi levado para as ambulâncias que já o aguardavam. Depois disso não sei o que ocorreu com o paciente.
No atendimento contei com ajuda valiosa da Dra. Georgete Machado Pereira, minha sócia de consultório, de um médico recém-formado e de uma enfermeira, chamada Marina.
O paciente era uma pessoa jovem, proveniente do Haiti, com vestimenta simples e com pouco dinheiro. Viajava na primeira classe que, sabidamente é muito cara. Ele não falava espanhol, português e inglês, apenas balbuciava algumas palavras em francês.
Tudo isso me deixou algumas interrogações. Quem era ele? Por que uma pessoa simples viajava na primeira classe? Era portador de doença gástrica? Eu particularmente achei tratar-se de um “mula”. Mula é chamado o indivíduo que usa seu corpo para transportar drogas. Comumente ingere papelotes de plástico ou capsulas contendo as drogas. Por certo, como soe acontecer, houve rompimento no estômago de invólucros e consequentemente o estado clínico e a reação gástrica.
De início parece uma situação simples, porém analisando com mais acuidade poderemos perceber algumas particularidades: Se chegasse em São Paulo, morto eu teria que prestar justificativas junto ao Instituto Médico Legal, o que me custaria tempo e muito aborrecimento. Seria necessária a autópsia para fechar o diagnóstico e quem autorizaria? O corpo seria encaminhado pra onde? Ainda, com o desvio de rota, reabastecimento e atraso de mais de 3 horas, quanto foi o prejuízo da companhia aérea?
Também ficou marcada uma situação interessante, quando voltei para a classe econômica, onde eu viajava com amigos, percebi alguns aplausos, muitas pessoas me olhavam com admiração e outras sisudas. Por quê? O atraso mais de 3 horas fez com que tantos passageiros perdessem em São Paulo, compromissos e conexões para outros destinos.
Aprendi então que nem tudo aquilo que fazemos de bom e com generosidade satisfaz sempre aà todos, porque acho a vida ser cheia de rumos diferentes.
De tudo ficou a certeza de eu ter cumprido meu juramento médico, ajudado salvar mais uma vida e acima de tudo estar de consciência tranquila.
Ainda senti uma satisfação íntima muito grande em perceber que, pela grandeza da medicina, eu, um simples médico daqui da terrinha, consegui desviar a rota de um grande avião e pousar fora do destino.
É a vida com seus desígnios e ensinamentos.
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(*)João Batista Leonardo é médico e escritor em Maringá

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