Leis sobre naturalidade e porte de armas destroem conceitos jurídicos

Por Jeferson Moreira de Carvalho:

Facílimo perceber que o Poder Legislativo brasileiro, em todas as esferas da federação, mas de modo especial da União, tem sede em legislar sobre temas insignificantes, que não contribuem para a melhoria de vida do brasileiro.
Existe, por lei, dia para comemorar praticamente tudo, mas não existem leis para de fato dar efetividade aos direitos constitucionais.

O excesso de leis no sistema normativo só causa problema, porque não é raro duas ou mais leis tratarem do mesmo objeto.
O que temos agora é o comportamento de destruição de conceitos jurídicos, isto pela simples vontade de legislar e achando (não pensando) que leis resolvem os problemas sociais existentes.
A Lei 13.484/2017, por exemplo, ao permitir que se escolha a naturalidade do recém-nascido, destrói conceito jurídico e deixa de refletir a realidade.
Segundo Houaiss, o vocábulo “conceito”, tem o significado de “noção, concepção e ideia”, entre outros significados; desse modo quando um vocábulo é escrito ou falado ele nos permite ter uma ideia dentro do contexto de realidade, sobre qual é o seu significado.
Desse modo, no mundo jurídico e social o vocábulo “naturalidade” tem o seu significado real, que não nos permite outro significado estranho ao que realmente significa.
De Plácido e Silva, em seu Vocabulário Jurídico, nos ensina que “naturalidade” vem do latim naturalitas, é empregado para designar a qualidade de natural da localidade, em que se nasceu, em seu próprio país. Encontramos em Law Dictionary que natural-born é a pessoa que nasceu em um lugar citado, é o natural (Mello, Maria Chaves, 7ª ed. Elfos, RJ)
Pois bem, deputados federais, senadores e presidente da República alteraram o significado de “naturalidade”, que indica o local onde a pessoa nasceu, nada mais.
A Lei 6.015/1973 sofreu alteração pela Lei 13.484/2017, com destaque, para dar permissão às mães que desejam indicar como naturalidade do nascituro, o local de sua residência e não a cidade onde de fato ocorreu o parto.
Essa permissão, além de destruir um conceito jurídico, dá à criança uma naturalidade que ela não tem. Quem nasceu em São Paulo é natural de São Paulo, não é natural de São Bento do Sapucaí, só porque a mãe reside nesse belo município.
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, afirmou que “a medida permite que milhares de municípios brasileiros que não possuem maternidade possam ter filhos da terra, ter cidadãos naturais daquela cidade…”; ora, se pensou nos municípios e não na criança, cujo primeiro documento já vai constar uma falsidade (Cartórios com Você, agosto a outubro de 2017, p.33). Repito: Quem nasceu em Jaboticabal não é natural de Taubaté.
Pior ainda: consta na norma que o assento e a certidão farão menção à naturalidade, e não mais ao local de nascimento (p. 34), o que importa concluir que a pessoa não vai saber onde nasceu.
Recentemente, surge mais uma pérola destruindo conceito que se estuda nos bancos acadêmicos, que é o caso da Lei 13.947/2017, que destrói o conceito de “hediondo”.
Em outra oportunidade, quando escrevemos sobre prisão e liberdade Provisória, fizemos a afirmação de que “Crimes hediondos são aqueles previstos pela Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, em obediência ao art.5º, XLIII da Constituição Federal. Tais crimes são aqueles que causam repugnância na sociedade, tais como: latrocínio, estupro, extorsão qualificada pela morte e outros”. (in Prisão e Liberdade Provisória. Editora Juarez de Oliveira. 1999. São Paulo. p.37/38).
Em Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antônio Geraldo da Cunha (Nova Fronteira), encontramos que o vocábulo hediondo é adjetivo com significado de sórdido, repugnante, depravado. Concluindo, seja juridicamente ou não, o significado de hediondo é aquela conduta repugnante, que causa espanto negativo.
Pois bem, a mencionada Lei 13.947/2017 considera crime hediondo a “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”; entretanto esta conduta, mesmo sendo grave, não se equipara de modo algum a um crime de estupro ou latrocínio, que causa sim repugnância em toda a sociedade. São crimes sórdidos.
Ou seja, para encontrar um modo de tornar mais grave uma conduta criminosa, os nossos Poderes Legislativo e Executivo destroem conceitos jurídicos firmados e que são ensinados nas faculdades, com a leviana ideia de que essa infeliz alteração legislativa vai restringir a prática do crime.
Enfim, vivemos em uma época de desorganização total no Estado brasileiro, que se agrava com a destruição de conceitos firmes e verdadeiros, para um fim que não vai se alcançar.
Em resumo: uma criança será natural de um local onde ela não nasceu, e talvez nunca vá saber onde nasceu, e, portar uma arma de uso restrito se transforma um crime repugnante, equiparado a um estupro. É o que temos governando o Brasil.
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(*) Jeferson Moreira de Carvalho é desembargador da 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC/SP. Publicado no site Conjur.

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