Não fere a Constituição…

… a prisão para condenados em segunda instância. Peço licença ao dr. José Jácomo Gimenes, juiz federal, com com quem já conversei e tive processos julgados, de quem guardo boa impressão sobre a condução e capacidade, e ao site Consultor Jurídico para reproduzir um artigo por ele escrito e publicado:

‘O professor Lenio Luiz Streck, renomado jurista, em sua coluna na Conjur, dia 8 de fevereiro, PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E JUIZ NATURAL: UM DIA OS TEXTOS VÃO REVIDAR!, voltou ao tema da prisão em segunda instância. Entre importantes argumentos, que convidam a um contraponto, confidenciou que “jamais pensou que uma corte ou o Judiciário pudesse decidir contra o texto da Constituição”.
Vamos ao texto constitucional, pois, como ensina o professor Lenio, se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto te diga algo. “NINGUÉM SERÁ PRESO ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA”, regra clara e direta, com todos os elementos para ser aplicada imediatamente. Não, não é esse o texto constitucional em debate. A troca propositada foi apenas para chamar atenção, ressaltar a argumentação, sem qualquer intenção irônica.
Qual o texto então? O que ele nos diz? “NINGUÉM SERÁ CONSIDERADO CULPADO ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA”. Esse é o texto constitucional. O texto não fala de prisão ou mesmo em cumprimento de pena. Fala de culpa. Com todo respeito aos constituintes, é uma norma que nem precisaria estar escrita na Constituição, pois é um truísmo, daqueles de fácil aprovação em grandes assembleias. Por óbvio, se ainda não acabou o processo, se ainda pode ter mais um recurso, o acusado não pode ser considerado definitivamente culpado.
Em todas constituições anteriores não havia essa regra, nem semelhante, vinculando a culpa do acusado ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Mesmo assim, não havia qualquer dúvida de que o réu somente era culpado em definitivo, com o nome lançado no rol dos culpados, quando transitado em julgado o último recurso possível no sistema judicial.
Por que não foi posta na Constituição a primeira regra citada (NINGUÉM SERÁ PRESO ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA), que fala clara e diretamente sobre prisão, com todos os elementos para aplicação imediata? Certamente porque não seria aprovada, com as consequência jurídicas e sociais imediatamente decorrentes. Optou-se por uma regra fácil, uma tautologia (só pode haver conclusão de culpa depois de terminar o processo que apura a culpa), sem qualquer vínculo expresso com prisão ou cumprimento de pena.
O termo prisão não era desconhecido do constituinte. A restrição à liberdade de ir e vir é tratada na Constituição como prisão, em vários incisos (LIV, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI e LXVII) do artigo 5º. A Constituição constrói e restringe o direito estatal de cercear a liberdade com base no termo prisão. A Constituição delimita completamente os fundamentos e requisitos da prisão sem qualquer menção de culpa ou culpado nos mencionados incisos.
Se o consenso dominante na constituinte fosse impedir prisão antes do trânsito em julgado, a Constituição, que tanto fez uso do termo prisão, tendo incisivamente delimitado este importante instituto (devido processo legal e ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente), não seria grafada com palavra e conceito diferente (culpado). Não houve opção deliberada do constituinte em exigir trânsito julgado na última instância para início do cumprimento da pena ou prisão.
O sistema penal vinha de uma indiscutível história de prisão após condenação da segunda instância, com possibilidade do tribunal superior suspender justificadamente. Essa é a tradição histórica do nosso sistema judicial, que deve ser especialmente considerada. A Constituição entrou em vigência em 1988, mas somente em 2009, 21 anos depois, o Supremo foi convencido, por maioria simples, que o texto falando de culpa poderia ser interpretado como proibição de prisão.
A construção da tese do princípio da inocência até a quarta instância (Supremo), a partir da regra que fala de conclusão final da culpa, foi lenta, 21 anos. A sua aplicação, a partir de 2009, em apenas 7 anos, confirmou um caos de injustiça e desequilíbrio social. O tresloucado sistema de quatro instâncias de julgamento e centenas de recursos intermediários, passou a permitir que os mais ricos e poderosos ficassem impunes, salvos pelo decorrer do tempo processual e vergonhosas prescrições.
O próprio nome, princípio da inocência, que muito alimenta a polêmica, contém uma impropriedade grave. A regra constitucional não tem a palavra “inocente”. Ocorre um salto de não culpado para inocente. Mais apropriado seria “princípio da não-culpabilidade”. Parece pouco, mas não é. Choca ouvir que um inocente está preso. Diferente se for dito que está preso um condenado em dois ou três julgamentos, mas ainda não culpado definitivamente, ante a possibilidade de recurso bastante limitado.
O professor Lenio cita Habermas: “a busca da resposta correta ou de um resultado correto somente pode advir de um processo de autocorreções reiteradas, que constituem um aprendizado prático e social ao longo da história institucional do direito”. Lenio confirma ensinando que “o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada não implica a elaboração sistêmica de respostas definitivas. Isso porque a pretensão de se buscar respostas definitivas é, ela mesma, anti-hermenêutica, em face do congelamento de sentidos que isso propiciaria”.
O que o Supremo fez em 2009 foi interpretar a Constituição, cumprindo sua função natural. Interpretar, porque a regra em referência não é clara e direta quanto à prisão, necessitando de uma ilação. Interpretar novamente, buscando uma resposta constitucionalmente adequada, como fez em 2016 e em 2017, retornando à antiga tradição, era um dever do Supremo, em nada podendo ser criticado por este procedimento. Por tudo isso, parece não adequada a alegação de que o tribunal está decidindo contra o texto constitucional. O Supremo está reinterpretando, voltando à antiga tradição.
Tem o argumento de que está sendo permitida a prisão de um acusado sem culpa definitivamente formada. Sim, a Constituição não proíbe e a interpretação da própria Constituição justifica essa resposta. A Constituição não autoriza expressamente prisão cautelar, provisória ou processual, mas não há qualquer resistência a essas medidas. Aceita-se a justificativa de que são necessárias e indispensáveis, mesmo correndo o risco de inocente ficar preso. Com mais razão, no caso da prisão após julgamento da segunda instância, quando o devido processo legal já foi cumprido em duas instâncias, quando as questões de fato e de provas já foram definitivamente resolvidas e o risco de prisão de inocente é ínfimo.
Muito se tem falado em prejuízo irreparável para o aprisionado em segunda instância e posteriormente absolvido em tribunal superior. É uma possibilidade remota, pois, mesmo após dois julgamentos, decisões de prisões em desconformidade com a jurisprudência nacional podem ser suspensas pelo STJ ou Supremo. A própria Constituição, reconhecendo expressamente a possibilidade de erros judiciais (certamente incluídas eventuais falhas sistêmicas) e prisões além do tempo, apresenta solução, novamente no contexto do instituto da prisão, determinando o pagamento de indenização (artigo 5º LXXV). É a solução possível e eleita pela Constituição.
Tem se argumentado também com o art. 283 do Código de Processo Penal, que exige trânsito em julgado da sentença condenatória para prisão. Importante lembrar que a redação do mencionado art. 283 decorreu da interpretação do Supremo em 2009 (redação dada pela Lei 12.403 de 2011). Portanto, se o Supremo voltou a antiga tradição, reconhecendo a possibilidade de prisão após segundo julgamento, a redação do art. 283, dependente da interpretação decaída, deve ter o mesmo destino, por contrariar a Constituição explicitada pelo Supremo.
Aplicação de princípio da inocência absoluto, por interpretação extensiva, leva ao desequilíbrio social. Imagine-se, a título de argumento, que a República tivesse mais dois tribunais na sua Constituição, o Tribunal Final e o Tribunal Definitivo, somente como respeitosos exemplos. O processo penal não terminaria em quatro gerações. Não haveria presos definitivos. O sistema judicial, além dos inafastáveis anseios humanísticos e conformidade com a Constituição, deve considerar a experiência histórica, razões de ordem prática e funcionalidade equilibrada do sistema penal.
O Supremo, além da prisão após o julgamento da segunda instância, deveria ir muito mais longe. Deveria encaminhar perante a sociedade e Congresso a entrega de toda competência constitucional recursal ao STJ, importante corte nacional, fixando na terceira instância a conclusão dos processos subjetivos. É insustentável que um mesmo processo seja julgado no STJ, pela visão da lei ordinária e depois pelo Supremo, pela visão constitucional, acumulando-se espetaculares estoques de processo e muita lentidão.
A Corte Suprema está em frangalhos com tanto trabalho (mais de 80 mil processos), deformada pela esmagadora predominância de julgamentos de recursos subjetivos, decisões monocráticas, liminares, pedidos de vistas sem limites, conflitos internos e descumprimento de sua principal função de corte constitucional. A produção de jurisprudência firme sobre as questões nacionais importantes está inviabilizada pelo exagerado fluxo de processos na Corte. O Judiciário se arrasta com 100 milhões de processos. Este é o problema central do sistema judicial, que deve ser debatido e criticado, visando a limitação dos processos subjetivos até a terceira instância.
Por fim, voltando ao tema propriamente, a Constituição não diz que o acusado poderá ser preso após o julgamento da segunda instância, mas também não diz que somente pode ser preso após o trânsito em julgado na última instância. Assim, é razoável defender com boa-fé a manutenção da histórica decisão da Suprema Corte, votada em 2016 e confirmada em 2017, que buscou um adequado meio-termo, acompanhando a maioria das nações civilizadas, permitindo a prisão do acusado já condenado em duas instâncias.
Akino Maringá, colaborador

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