Saúde é marcada por retrocessos na gestão Temer, diz revista britânica

A revista britânica Lancet, considerada a maior publicação mundial sobre medicina e saúde, diz em reportagem que governo Michel Temer impôs “um dos mais severos conjuntos de medidas de austeridade da história moderna”, baseado no trágico trinômio da austeridade, privatização e desregulamentação.

Katarzyna Doniec, Rafael Dall’Alba e Lawrence King destacam no texto os cortes nos programas de assistência social e o comprometimento de vários deles. Em 2017, ano em que o Ministério da Saúde foi comandado pelo deputado federal Ricardo Barros, “pela primeira vez em quase 30 anos, o governo desrespeitou o orçamento mínimo garantido pela Constituição para a saúde, reduzindo-o em R$ 692 milhões (aproximadamente US$ 210 milhões)”.
Confira o texto traduzido:

As crises política e econômica do Brasil estão servindo para esconder o fato de que o governo que assumiu com o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff, em 2016, está deliberadamente adotando uma política neoliberal também no campo da saúde pública.
Aqui resumimos brevemente as reformas de saúde e suas possíveis implicações a longo prazo. As novas políticas podem ser vistas a partir de três perspectivas: austeridade, privatização e desregulamentação.
O governo Michel Temer impôs um dos mais severos conjuntos de medidas de austeridade da história moderna. A emenda constitucional chamada de PEC-55, aprovada em dezembro de 2016, congelou o orçamento federal por 20 anos, ao nível de 2016, incluindo nesta restrição gastos com saúde.
Além disso, em 2017, pela primeira vez em quase 30 anos, o governo desrespeitou o orçamento mínimo garantido pela Constituição para a saúde, reduzindo-o em R$ 692 milhões (aproximadamente US$ 210 milhões). Outros setores relacionados à saúde, como educação e ciência, também enfrentam cortes de gastos: até 45% de cortes em pesquisa científica e 15% em universidades públicas.
O governo Temer está gradualmente se retirando do plano-chave de proteção social adotado no período Lula-Dilma, sobretudo o “Brasil Sem Miséria”, projeto estratégico que, por meio de mais de 70 programas especializados, forneceu apoio financeiro, acesso a produtos básicos e serviços públicos fundamentais para populações vulneráveis.
Muitos programas de assistência social, que complementam os cuidados de saúde preventiva e reduzem as desigualdades, estão passando por cortes de orçamento. Em 2017, mais de 1 milhão de famílias foram excluídas do Programa Bolsa Família, que visa à erradicação da pobreza extrema e da fome por meio da transferência direta e condicional de renda para as famílias mais pobres.
O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que envolve funções como educação rural, abastecimento de água e criação de empregos e foi uma das principais forças por trás da retirada do Brasil do mapa mundial da fome da ONU, está agora seriamente comprometido.
O Programa Cisternas, que oferece acesso a água potável para comunidades rurais empobrecidas, perdeu mais de 90% de seus recursos. Dado que uma das principais causas de crimes violentos nas comunidades rurais é o conflito pelo acesso à água, o encerramento do programa representa uma séria ameaça à segurança dessas populações pobres.
O financiamento do Programa de Aquisição de Alimentos, compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar para redistribuição entre os pobres e abastecimento dos mercados das grandes cidades, foi reduzido em 99%. Tais mudanças drásticas na direção das políticas sociais provavelmente reverterão o progresso social que foi atingido nas últimas duas décadas, cujo resultado foi o resgate de 28 milhões de pessoas da pobreza extrema e a elevação de 36 milhões de pobres à classe média.
O governo Temer pretende introduzir planos comerciais privados de saúde (que denomina de “Planos Populares”), destinados a substituir funções anteriormente desempenhadas, gratuita e universalmente, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os planos privados populares oferecem um escopo de serviços mais restrito que o mínimo oferecido pelo SUS, e estão sujeitos a menos escrutínio regulatório e menor fiscalização, o que geralmente resulta em má qualidade de serviço e altos custos diretos.
Estados e municípios são obrigados, até o momento, a investir recursos federais, através dos chamados “blocos financeiros”, em áreas estratégicas de saúde, incluindo atenção primária à saúde e saneamento. Mas as novas regulamentações liberam as administrações regionais de aderir a essa disciplina de gastos, que impõe o investimento de quantias especificadas em áreas estratégicas da saúde, e isto pode contribuir para a deterioração do SUS e para as desigualdades regionais de saúde.
Além disso, novas regulamentações diminuem o número obrigatório de médicos nos postos e clínicas públicas de emergência e nas unidades básicas de saúde, incluindo a redução do número mínimo obrigatório de agentes comunitários de saúde. Essa reorganização da atenção primária não só dá mais poder ao setor privado, ao diminuir a qualidade dos serviços públicos, mas também reduz a capacidade do SUS de uma gestão eficaz de emergências, prevenção e promoção da saúde. O enfraquecimento do setor público já afetou a cobertura de vacinação e a vigilância sanitária, resultando em um recente surto de sarampo.
Essas ações mostram que o governo do Brasil está se afastando dos princípios fundamentais da atenção universal à saúde, desrespeitando um direito constitucional. As atuais políticas de saúde neoliberais, combinadas com a desregulamentação das leis trabalhistas, e acentuadas pela grave crise econômica, não só agem contra a ideia de justiça social, mas também exacerbam duas grandes preocupações de saúde pública do país: desigualdades socioeconômicas graves e altas taxas de violência e homicídios.
Esperamos que este texto estimule o debate sobre a crise sistêmica da atenção à saúde no Brasil e contribua para o o debate e o controle das tendências neoliberais nas políticas de saúde pública e seus efeitos em todo o mundo.

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