E se Bolsonaro acabar fazendo, por distração, um bem ao país?

Por Reinaldo Azevedo:

E se Jair Bolsonaro (PSL) fizer, por distração, um bem ao país? “Olhem o Reinaldo a flertar com o capitão…” Calma! Não há chance de eu me deixar seduzir por pisadelas, beliscões e truculência.

Todos sabem o que penso sobre a candidatura de Bolsonaro. Expus de forma um pouco mais detida, em artigo na Ilustríssima, a repulsa que me causam parte de sua agenda, o modo como ele a apresenta e os sentimentos que mobiliza.
Não está, no entanto, em formação, observei, um movimento “fascista”. Rejeito o emprego da palavra como metáfora ou xingamento. Há, sim, valores inequivocamente fascistoides no conjunto da obra. Refuto que o candidato possa ser visto como expressão do liberalismo, ainda que o significado dessa palavra se esgotasse em uns tantos pressupostos econômicos. Gosto da ideia de que a economia, assim como a matemática, não é moral. Mas as pessoas são.
Ainda que o candidato encarnasse a totalidade do meu ideário pessoal para as relações de troca e as questões distributivas, não poderia, como jornalista com senso de decoro ao menos, condescender com uma candidatura que, a um só tempo, acusa o adversário de querer controlar a imprensa —de fato, o PT tentou fazê-lo no passado e volta a flertar com a ideia no presente—, mas ameaça, uma vez no poder, cortar verba publicitária de veículos de comunicação não-alinhados.
Se Bolsonaro se dispusesse a pôr fim à publicidade oficial, qualquer uma, seria uma escolha moral, certa ou não. Ocorre que ele está apenas a estabelecer critérios idiossincráticos para a imoralidade. Essa campanha eleitoral está tirando muitos demônios do armário. Os que carregam o invejável gene do otimismo poderiam até dizer: “Tanto melhor! Se algumas barbaridades residiam no fundo das consciências, que venham à luz”. Eu, de minha parte, prefiro que o lodo fique nas profundezas. Como ensina Dante. Ou J.K.Rowling. Potter.
Em seu malfadado discurso dirigido a eleitores concentrados na avenida Paulista, no domingo passado (21), Bolsonaro não se limitou a anunciar que pretende usar um bem público para retaliar a liberdade de imprensa. Referindo-se a adversários políticos, anunciou uma outra ambição: “Vocês verão umas Forças Armadas altiva (sic), que estarão colaborando com o futuro do Brasil. Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar, com retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês.”
Vamos ver: 1) a cúpula das Forças Armadas ficou alarmada com a fala; 2) as polícias civil e militar já dispõem de retaguarda para prevenir, investigar e reprimir crimes, mas não têm licença para escolher alvos políticos; 3) por ora, deixarei de lado a apropriação indébita do vocábulo “petralhada”. Voltarei oportunamente ao tema.
Esse tipo de pregação está incentivando toda sorte de psicopatas e sociopatas nas redes sociais, que alardeiam teorias conspiratórias as mais disparatadas e paranoicas. As Forças Armadas temem que os mais exaltados se sintam estimulados a enfrentar no braço ou à bala divergências do cotidiano, ideológicas ou não. Esperam, até agora inutilmente, por uma palavra de pacificação. O Ministério Público Federal precisa decidir se é conivente ou covarde. Na era do mimetismo ideológico, esse negócio começa prometendo faxinar os adversários e pode passar pelo envio de bombas aos maus brasileiros.
“E o tal ‘bem ao país’ lá do primeiro parágrafo, Reinaldo? Até agora, não vi nada”. Ainda é pensamento incipiente também na cabeça deste articulista, leitor. O PT desmoralizou tantas reputações ao longo de sua história que quase não sobrou a quem recorrer. Talvez a esquerda saia mais assustada, sim, desse processo, mas também mais civilizada. Como é mesmo? Então FHC e os tucanos d’antanho, em fase de extinção naquela configuração ideológica ao menos, não eram a “herança maldita”, a expressão da “direita reacionária” ou um instrumento das elites para esmagar o povo!? Com alguma sorte, vão se esvanecer algumas ilusões redentoras.
Do outro lado, há a possibilidade de que as necessidades do mundo real se imponham a Bolsonaro e domestiquem o populismo reacionário e truculento. Chegando vivos à terceira margem do rio, teremos nos livrado, nessa remota hipótese virtuosa, de duas concepções autoritárias de poder, uma delas escancaradamente fascistoide. É a porta estreita de São Lucas.
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(*) Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo

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