Na cola do Leminski

Por Douglas de Souza Fernandes:

Falando assim, poucos vão acreditar, mas já escrevi no verso do Leminski! Explico: em 1986, trabalhava no jornal curitibano Correio de Notícias, mas em Maringá, como repórter da sucursal na Rua Santos Dumont pouco depois da Praça Napoleão Moreira da Silva.

Na época, o Correio – em Curitiba – era povoado de feras. Graças ao Paulo Pimentel: o dono do Jornal O Estado do Paraná havia se indisposto com os jornalistas – não me lembro o porquê – fazendo com que o seu editor-chefe, Mussa José Assis, resolvesse cantar, por um tempo, na freguesia do Correio.
Para mim, o Mussa foi o mais completo jornalista que o Paraná já teve. Pra se ter uma ideia, aos 21 anos ele já chefiava a redação paulistana do lendário jornal Última Hora – de Samuel Wainer – tendo sob sua batuta, entre outros, Boris Casoy e Jô Soares.
E ele não foi sozinho para o Correio, levou junto uma galera de peso. Nela estava Paulo Leminski que, entre uma e outra poesia, na época fazia bicos como redator publicitário de agências e cronista de jornais. Bom, agora fica fácil explicar: como os textos dele eram publicados na primeira página do segundo caderno e o material das sucursais começava na página seguinte, obviamente escrevia no verso dele.
Para mim era um luxo escrever tão próximo de um dos meus poetas favoritos. E afinal, quem não quereria pegar carona em páginas como esta? :

“…Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.”

Mas embora tão perto, nunca o conheci pessoalmente. Na minha timidez de foca, me restringia a colecionar as páginas que ele criava, que as tirava das sobras de jornais que não chegavam aos leitores. Estava numa tarde fazendo isso, quando entrou na sala um homem simpático, baixinho, também tímido – e com vários tiques nervosos. Disse que seu nome era Cândido – pensei que era perfeito para ele. E me pediu jornais velhos. Fui buscá-los achando que ele iria vendê-los para levantar uns trocados.
Enquanto ele olhava os jornais, começamos a conversar e a conversa rumou, por causa de uma reportagem que vimos, para as artes plásticas – tema que conheço mal e superficialmente – mas sobre o qual vi que ele discorria com conhecimento de causa. Perguntei então o motivo de levar tantos jornais…E ele disse que não iria levar os jornais não, só queria recortar as crônicas e poesias do … Leminski!
Dai por diante, passou a aparecer por ali quase que diariamente para sairmos e conversar. Me contou que na juventude, no final dos anos 1960, morava em Curitiba. Era ligado ao pessoal das artes, intelectuais, mas nunca foi militante político. Entre os amigos curitibanos, o jornalista Fábio Campana – comunista, e que no currículo computa várias prisões entre 1964 a 1968. Numa delas, o meu cândido amigo foi junto. Ambos foram torturados – mas presumo que as técnicas usadas no segundo foram mais efetivas que no primeiro – o qual futuramente seria Secretário de Comunicação do Paraná. Daí nem precisei perguntar o motivo dos tiques do meu amigo.
Mas além daquele piscar frenético e alguns trejeitos, Cândido herdara da prisão a impossibilidade de trabalhar – vivia com a mãe numa situação financeira bastante difícil e submetido à forte medicação.
Pelos descaminhos da vida, nos perdemos. Anos depois soube que ele se tornara revisor de jornal e que um dia tentara conversar com o antigo colega de cela. Campana viera a Maringá já como secretario de Comunicação estadual para inaugurar uma impressora do O Diário. Disseram que Campana sequer o recebeu. Para mim, foi um erro de comunicação. Não conheço pessoalmente o Campana, mas não consigo ver um comunista que aja como aquele mineiro da famosa frase que Nelson Rodrigues atribuía a Otto Lara Resende – aquele que só é solidário no câncer.
Nos perdemos de vista quando saí do Correio e fui para O Jornal de Maringá, onde tive a honra de ser o último editor-chefe do diário criado em 1953 por Ivens Lagoano Pacheco. Tentamos – nós, os funcionários -, sem sucesso, arrendá-lo do seu último dono, o empresário Ramires Pozza. Mas ele acabou fechado-o e de sua estrutura surgiria o Jornal do Povo, até hoje do Verdelírio Barbosa.
Em 1991, como ainda faltavam jornalistas em Maringá, recebi dois convites de trabalho: das sucursais da Folha de Londrina – na época gerenciada pelo Milton Ravagnani – e do O Estado do Paraná.
Qualquer jornalista mais inteligente escolheria a Folha, na época o jornal mais influente do interior e que pagava melhor que o O Estado.
Mas não tive dúvida alguma ao escolher a segunda opção: foi vendo, ainda aos 8 anos de idade, aqueles calhamaços de páginas com capa colorida que meu pai comprava todos os domingos – e que vinham com o encarte do Estadinho! – que me apaixonei por essa coisa chamada jornal.
Dois anos depois, em março de 1993, fui transferido para a sede em Curitiba, exatamente no mês em que a cidade completava os seus 300 anos. Infelizmente, o mais influente poeta curitibano desses três séculos havia encerrado o seu expediente por ali e já poetava lá em cima há quatro anos.
Mas pisar pela primeira vez na redação de O Estado do Paraná foi uma felicidade dupla: por estar no coração do jornal de minha infância!; e por ser o jornal no qual Leminski iniciara sua “carreira jornalística”, primeiro dando o seu auxílio luxuoso ao Mussa e, mais tarde, sendo tema de entrevistas antológicas, como a feita pela amiga Adélia Maria Lopes no suplemento Almanaque.
E volta e meia me pegava imaginando que poderia estar teclando a mesma máquina de escrever de onde o autor de “Caprichos & Relaxos” desenterrara alguns de seus achados poéticos…

“…a máquina
engole página
cospe poema
engole página
cospe propaganda…”

E nos 23 anos em que trabalhei em Curitiba, pisei – literalmente – em muitos outros rastros deixados pela cidade pelo Poeta da Cruz do Pilarzinho. E olha que ele andava…

“Andar e pensar um pouco
que só sei pensar andando
Três passos, e minhas pernas
já estão pensando…”

Foi no bairro Pilarzinho que o poeta polaco encontrou suas raízes – e foi naquela região em que sempre morei em Curitiba, dada à proximidade do jornal do Paulo Pimentel. Com isso passei e parei muitas vezes em frente à uma das casas onde morou Leminski – uma casinha de madeira próxima à Avenida Raposo Tavares e que recebia – nos anos 70 – procissões de estudantes e artistas que iam ali para ouvirem sua prosa erudita, suas sacadas geniais, suas poesias luminosas e as belas músicas que compunha sozinho ou com figuras como Moraes Moreira, Itamar Assumpção, Caetano Veloso, Ivo do Blindagem e cia.
Mas quando ia – todo cheio de inveja de quem o conhecera pessoalmente – atrás de informações sobre ele, geralmente ouvia lembranças pouco lisonjeiras do Leminski. A maioria me dizia que era um sujeito de difícil convivência, que bebia demais, não tinha a higiene pessoal como uma de suas prioridades e sempre estava com alguma maluquice na cabeça difícil de acompanhar. Para quem não tinha contato com literatura ou leitura, achava uma reação natural – afinal, o próprio Leminski se autodenominara um “Cachorrolouco”.

“O pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
em nosso piquenique”

Ja´com os ditos “letrados”, mas que davam mais ênfase à vida pessoal do autor do que à sua produção literária, ficava um pouco surpreso, por constatar que eles não percebiam que o Leminski e tudo o que produziu eram uma coisa só. Se ele não fosse daquele jeito, fosse um “cidadão comum” teria criado uma “poesia comum”- daquelas que – por obrigatória cumplicidade – só leem os parentes e amigos próximos dos autores. Não que para se “escrever bem” tenha-se que “viver mal”. Mas, convenhamos, somos uma pessoa só – com os prós e assumindo os contras – ou somos pela metade.
Para esses, uma resposta só basta, e dada por outra bela e estranha pessoa, o Fernando, num trecho de um de seus mais conhecidos poemas, o “Navegar é Preciso” :
“… Viver não é necessário;
o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha… .”

Mas o que me interessava na época era conversar com quem havia conhecido o cotidiano do poeta. E, para isso, nada melhor do que ir aos bares que ele costumava frequentar. Conheci o dono de um deles, o Hamilton, que até hoje tem o bar – ultimamente, Lanchonete e Pizzaria do Hamilton – na Hugo Simas a uns 200 metros da Cruz do Pilarzinho. Bom de papo como todo bom botequeiro, ele é daqueles que só leem o essencial para saber de seus assuntos favoritos – as notícias policiais e as do esporte – no caso as do Coxa.
Contou-me que, durante um tempo, o Leminski aparecia quase que diariamente por ali no início da noite. Mas na época não gostava muito não: “o cara acabava com os meus guardanapos de papel!”, reclamou. E entre uma talagada e outra de vodka, escrevia freneticamente em um monte deles.
Mas o que deixava o Hamilton ainda mais bravo com o polaco bigodudo é que muitos dos guardanapos que, por horas a fio ele enchia de rabiscos e palavras, nem os levava consigo. Muitos caíam embaixo da mesa, outros ele simplesmente esquecia na mesa ou no balcão. Hamilton só descobrira quem era realmente Leminski – além do tomador de vodka que adorava desperdiçar os seus guardanapos – depois que o poeta morreu.
E o que ele fez com esses guardanapos todos, com os quais poderia até – quem sabe – lançar um livro com muito material inédito do Leminski? : “Ora, juntava tudo e jogava no lixo! Como iria saber que um dia ele se tornaria um cara famoso como ficou ?.”, lamentou o Hamilton.
Se arrependimento matasse, no mínimo o Hamilton iria para a UTI se tivesse visto o que os jornais do Brasil inteiro haviam dito do poeta que partia. Na Folha de São Paulo: “Morre Leminski, o poeta-síntese dos anos 1970”; no O Estado do Paraná: “Curitiba enterrou o seu maior poeta”; no Correio Brasiliense: “Morre o poeta mestiço que era pura poesia”…
Hoje o poeta é mais lembrado em Curitiba e fora dela pela Pedreira Paulo Leminski – que recebe os maiores shows nacionais e internacionais da cidade. Mas ainda continuo na cola dele – a minha casa em Curitiba fica a uns 1.300 metros da Pedreira que leva o seu nome.
Mas voltando à despedida do poeta, esta se deu às 21h20 do dia 7 de junho de 1989 – como registrou Toninho Vaz na sua ótima biografia “Paulo Leminski, o bandido que sabia latim”. E o último suspiro desse Samurai das Letras foi no Hospital Nossa Senhora das Graças, nas Mercês. No mesmo hospital – dirigido pelas Irmãs Vicentinas – nasceria o meu filho Douglas Aquino Fernandes, às 18h do dia 28 de dezembro de 1993. Na época nem imaginava que fora ali – como disse Toninho Vaz – que o poeta “pedira a conta ao garçom”. Só soube lendo o seu livro. Na época, para mim o Nossa Senhora das Graças era só a referência em obstetrícia da cidade.
O ideal seria terminar a crônica com uma poesia do próprio Leminski falando de seu velório. Mas como ele ainda deve estar muito ocupado lá em cima com seus eternos “perhappiness”, peguemos o que o também hoje falecido londrinense Itamar Assumpção (codinome Beleléu) escreveu para o amigo naquele 7 de junho de 29 anos atrás e que, para mim, seria exatamente o que Leminski escreveria se não tivesse sido o primeiro a partir :

“Leminski,
ei, psiu, sou eu Beleléu
não fui no enterro teu
porque você não irá no meu
estamos quites, adeus”.

___________

(*) A foto mostra Paulo Leminski, Alice Ruiz e Caetano Veloso na calçada da Cruz do Pilarzinho nos anos 1970. Na época, o baiano havia gravado Verdura, com letra e música do curitibano. A foto foi feita por Lina Faria (no destaque) e foi cedida ao saudoso amigo, jornalista, poeta e compositor maringaense Erly Ricci, que na época trabalhava comigo no jornal que editava na região do Pilarzinho, o Do Quintal, onde ela foi publicada.
No texto sobre a foto, Erly reproduziu o que Caetano dissera em depoimento sobre a relação com Leminski: “A primeira vez em que estive com Leminski foi em sua Curitiba natal. Aliás, por muito tempo eu o encontrava lá. Ele vivia com Alice Ruiz numa casa de madeira sem aquecimento, no Pilarzinho, um bairro perto do centro. Eu aguentava o frio das altas horas depois dos shows empacotado em casacos grossos. Mas o que aquecia o ambiente eram suas palavras, seus olhares de profundo carinho desconfiado, sua risada rouca e o milagre de algumas canções que ele compunha com parcos acordes de violão”.
(**) Todos os trechos de poesias do Leminski citados no texto são encontradas na íntegra no Toda Poesia, da Companhia das Letras.
(***) Douglas de Souza Fernandes é jornalista maringaense há 35 anos, trabalhou 23 deles em Curitiba, e voltou há dois para Maringá.

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