Os riscos da mitificação

Por Antonio Carlos Prado, na IstoÉ:

A posse do presidente Jair Messias Bolsonaro, no primeiro dia do ano, foi suficiente para demonstrar a alta dose de mitificação, em alguns momentos beirando o delírio e a alucinação, que já cerca o mais alto mandatário do País. Parece que o Brasil não aprende.

Não, não é somente no Brasil, esse fenômeno de fazer de fulano um mito se dá em todo o mundo, e tanto é assim que a poesia, a mais universal das linguagens, já o cantou na escrita de Carlos Drummond de Andrade: “sou eu o poeta precário, que fez de Fulana um mito, nutrindo-me de Petrarca, Ronsard, Camões e Capim”. Deixemos o amor aos apaixonados do coração, voltemos aos apaixonados por Bolsonaro e pela política. Ao longo da jornada humana, o fanatismo passou por tentativas de ser explicado por filósofos, sociólogos, cientistas políticos, psicanalistas e historiadores. Todos eles jamais conseguiram precisar se tal autoentrega tem o seu ponto de partida em quem admira ou em quem é admirado. Eis a pergunta clássica da psicologia social das massas para tal fenômeno: quem é espelho e quem é reflexo? Quem é Narciso e quem é lago? Dorian Gray ou seu retrato? Podemos ficar, aqui, com a resposta também clássica: há uma dinâmica, uma interação entre os dois fatores. Sempre! E no caso de Bolsonaro, especificamente, as manifestações cegas de apoio acrítico se fazem notar com intensidade e não apenas entre as pessoas que podemos chamar de eleitores comuns. O “mito” (enxugamento da expressão palmito, apelido do capitão e paraquedista) rapidamente está se tornando o “mito político” também entre os círculos que lhes são mais próximos (“o mito do Brasil se chama Bolsonaro”, declarou o ministro Onyx Lorenzoni), entre empresários e intelectuais, entre a alta classe média – pessoas, enfim, das quais se espera uma visão histórica e crítica. Até agora Bolsonaro não fez nada para ser julgado negativamente, acabou de se tornar presidente. Ocorre, no entanto, que, por esse mesmo lapso temporal, ele também nada fez para ser assim glorificado.
Uma explicação para o endeusamento está mais próxima no tempo: a esquerda e seus representantes que ocuparam a Presidência do Brasil (Lula e Dilma) escangalharam de tal forma o País e furaram tanto os nossos bolsos que Bolsonaro passou a ser olhado (perigosamente olhado, frise-se) como salvador da pátria. Dá medo! Assim ocorreu com outras figuras históricas e todos sabemos no desastre que deu, em alguns momentos para toda a humanidade, em outras ocasiões para a população específica de uma nação. É de uma Alemanha e de uma Itália arruinadas economicamente e humilhadas no acordo de paz da Primeira Guerra Mundial que surgiram ditadores como Adolf Hitler e Benito Mussolini. Caminhemos no tempo, e cheguemos mais perto do Brasil: da mitificação popular, da mitificação que leva ao populismo independentemente da ideologia, nasceu na Espanha a mão de ferro de Francisco Franco, nasceu na Argentina o populismo de Juan Domingo Perón, nasceu na Venezuela o populismo igualmente demagógico de Hugo Chávez e seu herdeiro, Nicolás Maduro. Nada disso prestou!
Caminhemos mais, e chegamos agora ao Brasil. Dos mais recentes para os mais antigos, eis alguns exemplos daquilo que está sendo exposto: Lula e Dilma e suas demagogias ao fingirem que encarnavam a alma do pobre; Fernando Collor e Jânio Quadros, verdadeiros Catões saídos das tribunas romanas para os comícios brasileiros a lançar a isca ideológica da moralização dos costumes (um acenava com a “caçada a marajás”, o segundo se preocupava com o uso de biquíni na praia, jogo do bicho e corrida de cavalo). Mais distante está o presidente que, ao se suicidar para não enfrentar o “mar de lama” em que atolara o seu governo (expressão criada por Carlos Lacerda em seu jornal “Tribuna da Imprensa”), fez com que gente do povo se matasse também nas primeras horas, sobretudo no Rio de Janeiro.
Se virou santo na morte, é porque já era beatificado em vida pela imensa maioria de brasileiros. Fala-se de Getúlio Dornelles Vargas, o popular “Gê-gê” que frequentou inúmeras marchinhas de carnaval, o autodenominado “pai dos pobres” que operou bem mais como “mãe dos ricos”. E Getúlio tem uma trajetória que as elites brasileiras não deveriam esquecer para nunca mais se deslumbrarem como o estão fazendo nesse instante. Getúlio chegou ao poder em 1930 por meio de golpe e não das urnas, em 1934 foi eleito presidente indiretamente pelo Congresso, em 1937 (Tcham! Tcham! Tcham! Tcham!) enfiou o País na ditadura do Estado Novo. Acabou deposto. Renasceu das cinzas para a Presidência do Brasil, pelo voto direto do povo e nos braços do povo, em 1950. Ficou até o seu trágico suicídio, ocorrido quatro anos depois.
A mitificação ou personalismo nas gestões governamentais levam à ditadura dependendo, é claro, do ego do mitificado. Bolsonaro, no dia 1º, frisou o respeito ao Estado Democrático. Mas ficou uma pulga atrás da orelha do livro da posse, coceirinha que vem da diplomação, ocorrida em dezembro. Nessa ocasião Bolsonaro falou sobre “um novo tempo” no qual o “poder popular não precisa mais de intermediação”. As falas eram messiânicas e é aí que mora o perigo da destruição do Estado Democrático de Direito. Bolsonaro é compulsivo pelas redes sociais (não é, Donald Trump?!), comunicando-se assim diretamente com a população. É isso que o populista faz, e, nessa linha direta com o povo, a atividade legiferante e o Poder Judiciário são, primeiro, ignorados, e, depois, arrasados. O que o príncipe fala passa a ser legislação, e ponto final. Cada época tem a sua rede social, nos tempos de Getúlio, por exemplo, vivia-se a era do rádio recém-iniciada no Brasil – que até valeu-se de fake news para antecipar a ditadura do Estado Novo: o general Olímpio Mourão Filho espalhou pelo rádio que havia um plano comunista para derrubar Getúlio. De volta aos dias atuais, Maduro estabelece essa linha direta com o povo – enquanto coloca em submissão o Supremo, cala a lei e prende adversários – e os Castro, na famigerada ditadura comunista cubana, atuaram da mesma forma.
A maior prova que Bolsonaro pode dar de sua vocação democrática é abandonar o tom messiânico de suas mensagens, deixar o bate-papo com a população e governar com o Legislativo e o Judiciário. É condenável que um maluco tenha tentado matá-lo, mas é igualmente deplorável a tática messiânica do presidente ao transformar o doido em articulado “inimigo da ordem e da pátria”, como ele discursou em sua posse.

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