O Brasil não merece Tom Jobim, a moça de Pompeia e a vaca atolada

Por Luiz Fernando Vianna, na revista Época:

Antonio Carlos Jobim nasceu num 25 de janeiro. Se fosse vivo para ter completado 92 anos nesta sexta, estaria morto. De vergonha, de tristeza. Morto de Brasil, porque este país mata.

São mais de 60 mil pessoas assassinadas todo ano, além das 19 que o desastre de Mariana levou em 2015, além das que sucumbem diariamente aos descasos públicos e privados.
O Brasil não merece Tom Jobim. Águas de março, composição de 1972, é “o samba mais bonito do mundo”, na definição de Chico Buarque. É a lama, a lama do bem, da promessa de vida no teu coração. Há alegria, e não metáfora, quando se canta “o fim do caminho”, “o fim da picada”, “o fim da canseira”, “o fim da ladeira”. Mas, nesta terra que não merece Tom Jobim, a ladeira não dá samba nem tem fim.
A cada Mariana, a cada Brumadinho, perguntamos: agora chega, certo? Mas não. O Brasil é um país que não chega.
O Brasil não merece a vaca que, nas imagens do desastre, está coberta de uma lama que varia do rosa ao marrom, uma pasta fim-de-mundo. O brejo foi até ela. Símbolo do desmatamento, porque matas são queimadas para a pecuária passar, a vaca atolada é bovinamente inocente. Calhou de pastar no país errado.
Outras imagens mostram bombeiros corajosos – e, muito provavelmente, mal remunerados – salvando pessoas transformadas em figuras de Pompeia. A cidade do Império Romano foi destruída no ano 79 pela erupção do vulcão Vesúvio. No século XVIII, escavações chegaram até corpos que permaneciam na posição em que tinham sido atingidos pelas cinzas e pela lama. O inimigo de Pompeia era uma avassaladora força da natureza. O Brasil não precisa disso. Nós somos o nosso próprio Vesúvio.
As histórias dessas esculturas vivas – e das outras também – serão contadas pela imprensa. Saberemos, por exemplo, quem é a moça de cabelo rabo-de-cavalo que tem o braço esquerdo puxado por um bombeiro e, assim, é resgatada. Voltarão à lama os repórteres que cobriram a tragédia de Mariana e vinham denunciando, nos últimos três anos, que nada estava sendo feito para evitar outro desastre. E veremos imagens que, com a ingenuidade das vacas, achávamos possível não ver de novo.
Antes das imagens, costumam chegar as palavras. E estas também se repetem, sadicamente, a cada desastre.
O presidente da Vale, Fabio Schvarstman, disse estar consternado com o rompimento da barragem e que a hora é de socorrer as vítimas. A empresa pouco se preocupou com as consequências do desastre de Mariana e a destruição da vida das famílias da região. Preferiu gastar fortunas com advogados que protegessem seus lucros – e não seus próprios funcionários, agora atingidos em Brumadinho. Para o “mercado”, a ex-estatal Vale é símbolo de uma privatização bem-sucedida. É símbolo, antes de tudo, do capitalismo à brasileira.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu “providências firmes das instituições”. Seu retrospecto no cargo não lhe confere muita credibilidade.
O vice-presidente Hamilton Mourão elegeu uma prioridade: “Essa conta não pode vir para o nosso governo”. Realmente não pode. E louve-se a informação de que Jair Bolsonaro decidiu com rapidez sobrevoar a área. Em 2015, Dilma Rousseff levou sete dias para fazer o mesmo.
O problema, general Mourão, é que são muitas e antigas as ladeiras por onde a lama brasileira desce. Nossa legislação é construída por políticos sustentados por empresas de mineração, pelo agronegócio, por fabricantes de armas e munições, por impérios religiosos. O resultado são barragens rompidas, florestas destruídas, indígenas mortos em suas terras, brasileiros (civis e militares) mortos aos magotes por armas legalizadas, mulheres mortas em clínicas de aborto clandestinas, gays mortos a pancadas, militantes assassinadas com tiros na cabeça e depois assassinadas de novo por políticos que violentam sua memória… E muitos desses políticos e desses interesses estão representados no novo governo federal.
Mas não tem nada, não. Este é o país do futuro. O Brasil acima de tudo. E Tom Jobim longe disso. Ele não mereceria.
(Foto: Isac Nóbrega/PR)

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