A lama, o ódio, a responsabilidade

Por Cora Rónai, em O Globo:

Como é morrer soterrada na lama? Eu já levei muitos caldos na praia, já tive o lombo arranhado pela areia do fundo, perdi noção se subia ou descia, engoli tanta água salgada que a garganta e o nariz ficaram ardendo dias — não cheguei a me afogar mas quase, e não preciso fazer um grande esforço de imaginação para entender como é morrer no mar.

Qualquer um que já caiu numa piscina ou que teve banheira em casa quando era criança e tentou ver quanto tempo ficava sem respirar tem pelo menos uma vaga ideia de como é morrer afogado na água.
Mas como é morrer afogada na lama?
Como é ser arrastada por aquela massa? Como é sentir o impacto, perder o pé, engolir aquela porcaria toda? Como é tentar lutar por ar naquela escuridão gosmenta?
Tento imaginar mas desisto logo, abalada pelo horror. Subo para a superfície do pensamento, respiro e tenho vontade de gritar, de sair para a rua quebrando tudo, de me esconder debaixo da cama e de comprar a primeira passagem para qualquer outro canto, tudo junto, ao mesmo tempo.
Penso em Brumadinho, nas vítimas de Brumadinho, em toda a natureza perdida de Brumadinho, e sinto um ódio tão grande e tão poderoso quanto a lama.
Um país que faz a gente se confrontar com um sentimento tão violento precisa parar e repensar, a sério, as suas prioridades; uma empresa que traz esse sentimento à tona precisa parar, ponto.
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A diretoria da Vale tinha que ser responsabilizada pelos crimes que cometeu. Desde Mariana, desde Bento Rodrigues, desde Paracatu de Baixo. Desde as vidas que foram perdidas ali, desde o Rio Doce assassinado. Enquanto a punição for apenas financeira, nada vai mudar — afinal, quem paga, quando paga, é “a empresa”, essa vaga coisa montada com tantos vícios.
Até agora, as multas do Ibama aplicadas à Samarco ainda não foram pagas; até agora, os atingidos de Mariana aguardam reparação.
Diretores vão para a televisão, manifestam surpresa, pedem desculpas, choram lágrimas de crocodilo… e continuam intocáveis e intocados nas suas vidas bem acolchoadas, homens virtuosos que, afinal, não fizeram nada.
Quando não vão eles, vão os seus advogados, para negar qualquer responsabilidade.
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O governo falhou na fiscalização, falhou na legislação, falhou em tudo o que precisava ter feito mas não fez, tudo o que precisava ter feito mas não faz, desde que existe governo neste país. A canalha é federal, estadual e municipal. Se isso não bastasse, ainda precisamos aguentar o cinismo de autoridades e ex-autoridades que tentam usar politicamente a tragédia pela qual são corresponsáveis.
Mas é fácil apontar o dedo para as falhas do governo, e dizer que a Vale, afinal, agia dentro da lei. A Vale fez as leis; a Vale comprou as leis.
Empresas, como pessoas, precisam ter valores. Uma pessoa decente não é decente apenas por medo de ir para a cadeia; uma empresa decente não pode ser decente apenas no limite da lei — que ela molda e retorce de acordo com as suas conveniências.
A lama da Vale não está apenas nas suas barragens assassinas.
(Foto: Ricardo Stuckert)

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