Com que roupa vai o presidente?

Por Rodrigo Levino, no site da revista Época:

1 – Corte-se da metade para cima a imagem dos cinco presentes na foto do encontro, em novembro do ano passado, entre o recém-eleito presidente Jair Bolsonaro e o assessor de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, e ainda assim será possível deduzir qual deles é o americano.

Dos calcanhares de Bolsonaro, dos generais Augusto Heleno e Fernando Azevedo e Silva, e do hoje chanceler Ernesto Araújo, salta uma maçaroca descuidada, sem apuro. Bolton era o único com a barra da calça ajustada sob medida. Questão de rito e rigor, não de elegância.
2 – Em Atenas, na Grécia Antiga, os debates se fiavam também pelo bem-vestir dos oradores. Na ágora, palco das disputas políticas, se ornavam palavras e vestes. Sólon, pai da democracia ateniense, por exemplo, era “modesto demais até para falar com seus braços para fora da túnica”. Num discurso virulento, Ésquines censurou Timarco porque este, segundo suas palavras, “dia desses numa assembleia do povo arrancou sua túnica e saltou feito um ginasta, seminu”. O desleixo, prosseguiu, “cobriu os olhos de vergonha pela cidade, por deixarmos homens como esse posarem de nossos conselheiros”.
3 – A Barra da Tijuca, onde se deu o encontro com Bolton, não é a Grécia Antiga. Brasília tampouco, mas, entre um e outro lugares, vai à distância um rito que, a julgar pela foto divulgada na última quinta-feira (14), com o presidente em traje-molambo cercado por alguns de seus ministros, no Palácio do Planalto, Bolsonaro faz pouca ou nenhuma questão de preservar ou se adequar. Noutra imagem, de uma reunião anterior à foto, a camiseta falsificada do Palmeiras expõe o deslize de um sonegador de impostos.
4 – Num ensaio de 1950 chamado “O espírito das roupas”, a filósofa e crítica literária Gilda de Melo e Sousa demonstra, com um apanhado literário rigoroso, como a vestimenta também conta a história. Do legionário romano ao profissional liberal do século XX, categorias, gestos, posições, gênero e atitudes podem ser esmiuçadas pelas vestes de um indivíduo, assim como suas intenções. Adequar-se aos ritos não necessariamente distancia o governante da plebe, mas a inspira, sob pena de que, à medida que se degrade, a autoridade se dilua, tal como no arroubo de Timarco de Atenas.
5 – Tão louvável quanto a gana pelo trabalho, mesmo em condições de convalescência, é reprovável o desmazelo da apresentação do presidente. Coisa estranha a um soldado, aliás. Coturnos tão lustrados onde se possa ver o rosto de quem os calça e fardas engomadas e sem vinco são as lições de dever primevas da caserna. A roupa também fala de quem a veste. O Exército Brasileiro, de cujas fileiras saiu Bolsonaro, tem cerca de 15 uniformes entre seus itens, que contemplam desde a prática de esportes ao operacional cotidiano, de guerra e os trajes de passeio completo e de gala.
6 – A retórica desabrida do presidente casa perfeitamente com as cenas de sua simplicidade de “homem do povo”, que lava a própria roupa, come pão com leite condensado no café da manhã e vai ao Planalto como se fosse à padaria, em pés de chinelo. Mas parece ter agora, na elite, uma recepção distinta e muito menos preconceituosa do que teve, por exemplo, a imagem do ex-presidente Lula, em janeiro de 2010, carregando um isopor de cerveja na cabeça durante o descanso com a família na base naval de Aratu, na Bahia.
7 – À época da foto de Lula, petistas a impulsionavam como prova do vínculo popularesco do seu líder. Os detratores — e é fácil deduzir que entre estes já havia futuros eleitores de Bolsonaro — atacavam a falta de cerimônia, o aspecto tosco da imagem para um presidente da República, como se fosse “um qualquer”. Na tal da Nova Era, o ativo lulista transmutou-se em bolsonarismo de resultados: se o tom de seu discurso é de achincalhe dos poderosos e implosão de um sistema que ludibria o povo com léxico e vestes empoladas, descer à forma das ruas, ignorando o rito do cargo, deve ser o perene.
8 – Na década de 70 o general Ernesto Geisel, então presidente, foi flagrado pelo fotógrafo Orlando Brito em traje de banho durante uma caminhada na Praia do Meio, em Natal, Rio Grande do Norte. O clique partiu de uma lente teleobjetiva de 300 milímetros postada no quarto à beira-mar. Temeroso da própria audácia, Brito escondeu o filme entre as roupas de cama sujas do carrinho da faxineira do hotel. Puro excesso de cuidado; Humberto Barreto, secretário do presidente, deixou escapar que a cena tinha intenção, era parte do cenário que se armava para o movimento de abertura política e distensão das relações do presidente com o povo. Havia o que se comunicar, mas de forma parcimoniosa e calculada.
9 – Bolsonaro, ou Cavalão, como era conhecido entre os colegas de farda, e a quem Geisel chamou de “mau militar”, radicalizou, desde a campanha eleitoral, a comunicação direta com os cidadãos e não faz menção, até aqui, de amainar o estilo. Da mesa de cirurgia em Juiz de Fora, Minas Gerais, onde se submeteu aos primeiros socorros após a tentativa de assassinato que sofreu, aos procedimentos recentes — o processo de convalescência, as cicatrizes, os pontos e a bolsa de colostomia, tudo está exposto. Os trajes, pelo que se vê, são parte da mesma estratégia. Acompanhemos a história que vai ser contada também por eles.

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