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Crônica

Dois goleiros de outro mundo

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoEm tempo de futebol, permitam-me falar dele. Admira como na minha infância pobre e desprovida de meios, ele tenha significado tanto. Vivendo em lugares perdidos deste mundo, sem poder vestir, como as crianças de hoje ainda no colo dos pais, uma dessas belas camisas de times, sem campo, sem técnico, sem escolinha, sem nada, o futebol marcou profundamente a infância minha e de meu irmão Eraldo. Assim como marcou a infância de muitos moleques pobres e ignorantes, como nós, de qualquer outro esporte. Para nós a chance de algum esporte chegava até ao futebol e morria aí.
A nós dois coube a sorte de assistir ao nascimento do primeiro time de futebol de Jales. Pelo menos, primeiro com um mínimo de organização: com diretoria, plantel, uniforme, cores próprias, escudo e até hino. Foi fundado pelo professor Paulo, nosso diretor do grupo escolar, única escola da cidade. Naquele fim de mundo, os professores vinham todos de fora, alguns até de cidades grandes. O querido professor Oscar Aidar, do meu 2° ano, centroavante e ídolo, por exemplo, viera de Sorocaba. Assim nasceu a Associação Atlética Jalesense. Com esse nome não existe mais. Como tantos clubes de outras cidades, foi substituída por novas agremiações de nomes parecidos. Mas do time original, aquele do começo, de atletas que a gente conhecia e com quem podia conversar, desse posso dizer: “Meninos, eu vi”.Continue lendo ›

Crônica

As palmadas da lei

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoNão lembro se já contei este episódio. Recordo bem coisas do passado, mas ando esquecendo as recentes. Tenho medo do alemão que ronda gente da minha idade. O tal do Alzheimer, que acompanhou o padre João de Castro Engler nos seus últimos dias. Teólogo insigne, professor no Studium Theologicum, de Curitiba, afiliado à Universidade Lateranense de Roma, Engler morava no seminário anexo ao Studium. No final da vida recolheu-se ao seu quarto em companhia dos seus queridos livros. Vejam só o que o Alzheimer aprontou para ele. De vez em quando, padre Engler punha-se a vagar, inteiramente nu, pelos corredores do enorme prédio. Algum seminarista o encontrava, cobria-o como podia e o levava de volta para o quarto. Não é muita humilhação para quem dedicou uma vida inteira à formação dos novos padres em São Paulo e no Paraná?
Está certo que hoje existem recursos médicos mais avançados que na sua época. Nem tenho a pretensão de chegar aos pés da sumidade que ele foi. Se, porém, me acontecer de chegar a esse ponto, por favor, me segurem em casa. Não me deixem sair à rua.Continue lendo ›

Crônica

As dores de cada um

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoDom Jaime gostava de citar o versículo 10 do salmo 90: “Os anos de nossa vida são setenta; para os mais robustos, oitenta: assim mesmo cheios, em sua maior parte, de fadiga e aborrecimento”. Acho que para mostrar que era um caso raro. Não completou um século, como pretendia, mas chegou perto. Morreu aos 97 anos. Poucos atingem essa marca.
Em nossos dias as pessoas vivem mais que no passado. Todos os países apresentam crescimento na expectativa de vida do seu povo. Quando era jovem, eu fazia as contas: no ano 2000, na virada do século, estarei com 59 anos. Parecia uma coisa longínqua, que nunca ia chegar. Hoje, meus 59 anos continuam distantes. Só que lá atrás. Nunca mais voltarão.
Com pesar percebo que minha disposição física não é a mesma. Mudou muito. Para pior, infelizmente. Já comentei a opinião de um amigo meu, homem simples, mas de grande sabedoria. Certa ocasião, ele me disse: “Olhe, padre, nós estamos naquela idade em que as pessoas não perguntam ‘Como vai’, mas ‘Onde dói’”. Verdade. No passado, com frequência, eu aceitava convite de amigos para pescar. Não sou grande pescador; mas é o hobby que mais me atrai. Uma distração que me reanimava para o trabalho. Fazia anos que eu não pescava mais. Outro dia, um amigo querido teve a bondade de me levar ao velho Paranazão. Levei um susto. Não pensei que eu tivesse envelhecido tanto. Continue lendo ›

Akino

Um tema para crônica do padre Orivaldo

Sou admirador dos textos do padre Orivaldo, a quem desejo pronto restabelecimento, e gostaria de sugerir um tema para uma de suas próximas crônicas. Seria mais ou menos: Para onde vamos? Ou Céu, Inferno e Purgatório?
O motivo é uma curiosidade que tenho, quando morrem famosos, como Luciano do Valle, que seus colegas da crônica esportiva endeusaram e o Neto vive repetindo que ele lá do céu o está inspirando. Outros dizem que ele está ali, trabalhando com eles. Outro foi o Pinga Fogo, que o Salsicha insiste em dizer que lá do céu continua fazendo suas ajudas. Em ambos os casos há controvérsias, mas há o caso de Jair Rodrigues, que alguns disseram que foi fazer festa no céu, este parece unanimidade. Já quando morre um bandido, dizem que foi direto para o colo do capeta, no inferno. O próprio Pinga Fogo dizia isso. Ninguém fala no purgatório. Por que? Aprendi que muitos vão para o purgatório.Continue lendo ›

Geral

Sábado sem crônica

Esta semana não tem crônica do padre Orivaldo Robles. Ele descobriu dias atrás que está com herpes-zóster, herança da varicela da infância. “Consta que para 20% dos mortais ela pode retornar, dezenas de anos depois, sob a forma de irritação dolorosa de apenas um lado do corpo. Descobri que faço parte desse “privilegiado” grupo. Ainda bem que deve durar só uma semana. E só acontece uma vez. Mas dói pra burro”, explica.

Crônica

A mãe do padre

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoNo anedotário esportivo todo árbitro de futebol tem duas mães: a que fica em casa e a que entra com ele em campo. Ele nem botou ainda o pé no gramado, basta apontar no túnel com a bola na mão e já as duas torcidas homenageiam sua genitora. Ninguém dá a mínima para seu nome ou currículo, se ele é principiante ou faz parte do quadro da FIFA. Mas sobre sua mãe todos têm opinião formada.
Felizmente, não é meu caso nem o dos colegas. O povo ignora se padre tem mãe. Nem dela faz a mínima ideia. Cá entre nós, se é para lembrá-la como a do juiz de futebol, melhor mesmo que a esqueça. Pode parecer estranho, mas há pessoas que levam um susto quando descobrem que padre também nasce de uma mulher igual às outras.
Dizem que mães são todas iguais, só muda o endereço. Não sei se vale para mães de padres. Elas parecem diferentes. Continue lendo ›

Crônica

Uma para cada dois

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoFato bastante curioso, entre os muitos da minha longa atividade pastoral, foi a celebração das bodas de ouro (50 anos) de união de um casal amigo. Alguns dirão: “Grande coisa; qualquer padre faz isso”. Calma; não terminei. Dez anos depois, os filhos pediram a missa em ação de graças, desta vez, pelos 60 anos de matrimônio dos pais. Ainda não contei tudo. Outros dez anos passados e me pediram a celebração dos 70 anos da mesma união. Desse tipo foi o único caso que me aconteceu. E não haverá outro.
Quem esteve naquele 70° aniversário de casamento não esquecerá o que presenciou. A esposa sofria do mal de Alzheimer. Com mais de 90 anos de idade, o marido a tratava com uma ternura comovente. Ele quis ler em público uma oração que tinha preparado para a ocasião.
Agradeceu a Deus pelos filhos numerosos, todos vivos, honrados e motivo de orgulho para os pais. Depois, rendeu graças pela companheira de tantos anos. Continue lendo ›

Crônica

A nova Páscoa

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoQuem passou a infância na roça, há mais de 60 anos, e sem referencial católico, como eu, lembra como era a semana santa. Coelho, chocolate, Páscoa, nem pensar. Ressurreição de Cristo, batismo, muito menos. Festa era o Natal, único dia do ano em que víamos guaraná. Furávamos a tampa da garrafinha e por ali a sugávamos para durar mais. Era também o dia da sobremesa, do manjar branco com calda de coco. Sem ameixa, que não chegava à venda da cidadezinha em que morávamos. Maravilha que só a mãe sabia fazer. Seu odor impregnava a casa inteira e seu paladar era único. Depois que a mãe, idosa e doente, parou de fazê-lo, não voltei a sentir aquele gosto em nenhum outro. Menos ainda nesses comprados, que já vêm prontos, em potinhos de plástico, com calda vermelha por cima. Servem para iludir as crianças, que jamais terão a chance de saborear a delícia antiga, que a mãe cozia no fogão de lenha.
Ah, sim, eu falava da Páscoa, festa máxima do calendário cristão, sobre a qual, na infância, não recebi informação. Nem eu nem os outros jacuzinhos, que moravam numa colônia de café. Ou em sítios da redondeza. Continue lendo ›

Crônica

A Quaresma

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoEstamos no final da Quaresma. Ela termina com a missa da Ceia do Senhor, na quinta-feira santa. Não estranhem meus poucos e bondosos leitores que eu comente sobre religião. É assunto normal para um padre, não?
A Quaresma está no fim e, pelo que tenho conhecimento, ninguém topou com algum lobisomem. Nem conheceu quem tenha visto um. Pelo menos nestas paragens e por esses dias. Em tempos passados, quando nossos pais moravam no sítio, se, em horas perdidas de uma de noite sexta-feira da Quaresma, os cachorros latissem e rosnassem com ferocidade, dentro de casa as pessoas arrepiavam-se e sentiam um frio na espinha. Só podia ser o lobisomem, cujo hábito era justamente vagar durante a Quaresma, sempre pela meia-noite das sextas-feiras.Continue lendo ›

Crônica

O corcel de dom Jaime

padreorivaldoJá está em casa, de volta, o corcel preto de Dom Jaime localizado em Goioerê. Ladrão estabanado: foi roubar logo o carro mais conhecido de Maringá!
Enquanto gozou de saúde, Dom Jaime nunca teve motorista. Gostava de dirigir. Primeiro, a perua cinza recebida na chegada, em março de 1957, do prefeito Américo Dias Ferraz. Era uma picape Willys, adaptada para imitar a Willys Station Wagon, precursora da nossa Rural Willys de saudosa lembrança. Não sei por quanto tempo ele manteve a famosa “perua do bispo”. Num ponto Dom Jaime não tinha vaidade: passava anos sem trocar de carro.
Quando os valentes jipes deram lugar aos primeiros fuscas, ele não viu muita graça na mudança. Acho que o assustou a visão do corpulento Dom Gregório Warmeling, bispo de Joinville, dentro de um. Encontrando-o, um dia, ao volante do próprio fusca, Dom Jaime não aguentou: “Dom Gregório, como o senhor entrou aí? De calçadeira?”. Preferiu um DKW Belcar branco, com o qual rodou por anos a fio. Não me lembro de outros carros. Até que ele adquiriu o corcel preto 1975.Continue lendo ›

Crônica

Lágrimas de homem

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoSe, como dizem, homem não chora, estou mal na foto. Por muito pouco, mesmo com esforço para segurar, acabo caindo no choro. Justifico-me apelando para as sete décadas que carrego nas costas. Idosos são emocionalmente mais frágeis que jovens. O duro é que no meu caso deve ser não consequência da idade, mas jeito da madeira. Minha saída de Paranacity foi prova clara. Eu estava com trinta anos. No discurso de despedida daquele povo que eu tanto amava, destampei numa choradeira inconsolável. Não consegui pronunciar mais que três ou quatro palavras. Dei um vexame histórico.
Remexendo o fundo do baú de meu coração mole, encontro o pesar imenso que me causa a dor especialmente de crianças. O sofrimento desses inocentes – ah, não dá – me engrola a língua e me arranca lágrimas. Isso vem de longe. Continue lendo ›

Crônica

Como irmãos

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoA historieta a seguir alguns já leram no livro “A Igreja que brotou da mata”, que lancei em março de 2007. É verdadeira.
Nos anos 90, a Paróquia São José, da Vila Operária, foi confiada a Padre Silvino Pedro Rabuske. Corpulento feito um guarda-roupa de casal e bem jovem, nós o chamávamos Pedrinho, por causa da cara de menino. Seu auxiliar, Padre Arthur Frantz, passava dos setenta. Ambos jesuítas, de sólida formação e disciplina, era um mistério como se entendiam sob o mesmo teto. Não é comum o jovem ser o superior do idoso. Pelo menos se têm idades tão diferentes. Um dia, não contendo a curiosidade, uma senhora animou-se a perguntar: “Padre Arthur, o senhor tem mais de setenta anos; Padre Pedrinho, uns trinta. Trabalham juntos. Vocês nunca discutem? Como é que se entendem?”. Com graciosa serenidade o velho padre respondeu: “Não há nenhum problema. Vivemos como irmãos”. E para deixar bem claro, completou: “Brigamos todos os dias”.Continue lendo ›

Crônica

Na infância tudo se decide

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoEntre as muitas coisas que aprendi em criança, uma, que me marcou de modo indelével, foi a preocupação com o bem-estar alheio, com o respeito devido aos outros. Já tive oportunidade de comentar o conselho que o pai não se cansava de nos repetir: “Não sejais pesados a ninguém”. Embora homem do campo, que não frequentara bancos escolares, havia conquistado, não sei onde nem como, uma sabedoria que universidade nenhuma ensina. Era incapaz de conduta ou gesto que ferisse o direito ou até a simples preferência de alguém. Não que ele assumisse postura subserviente. Possuía clara consciência de seus direitos. Se deles chegava a abrir mão – como, mais de uma vez, pude comprovar, – fazia-o em razão de uma naturalidade que lhe brotava de dentro, de uma generosidade inata; nunca por covardia ou temor. Com tal protótipo sempre ao lado, enquanto nós crescíamos, seria mesmo difícil não nos deixarmos moldar por ele. Há gestos que ainda agora, a três décadas de sua morte, os filhos recusam praticar. Não tanto, creio, por virtude própria, senão mais pelo que ele nos deixou como exemplo. Vimos nele a importância de crer, desde muito cedo, que a grandeza de alguém independe de certos atributos hoje, infelizmente, muito valorizados.Continue lendo ›

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O sabiá

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldo“Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá;/As aves que aqui gorjeiam/Não gorjeiam como lá”. Fosse o seu Maranhão dominado, como hoje, pelo clã Sarney, é provável que Gonçalves Dias não visse Coimbra como exílio, mesmo tendo lá vivido como estudante, dos 15 aos 22 anos. Nem talvez sentisse muita saudade.
Desconheço que palmeiras eram as de Caxias (MA), sua terra. Não, com certeza, as garbosas palmeiras imperiais da nossa Avenida 15 de Novembro. Imperiais porque o primeiro exemplar foi plantado por Dom João 6°, no Jardim Botânico do Rio, em 1809.
Para cantar sabiá prefere mesmo palmeira? Durante muito tempo, bem cedinho, na Avenida 15 de Novembro, encantou-me a melodia de um sabiá-laranjeira. Nunca percebi se cantava em palmeira ou noutra árvore. Pela “Canção do Exílio” tinha que ser numa palmeira. Muitas vezes tentei, mas jamais o vi na folhagem daquela altura. Sabia esconder-se o espertinho. Lá no alto emitia seu gorjeio, que musicava minha manhã nascente. Assim foi por meses, nem sei quantos.Continue lendo ›

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O palavrão

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoTarde de um domingo destes. Caminho para a Catedral. Em minha direção, na calçada, vêm dois rapazes. A todo instante olham para trás com um sorriso maroto. Lá adiante, o motivo: três garotas em shortinhos sumários, que só não revelam pensamento. É a moda, que fazer? Ninguém lhe resiste. (A propósito, alguns esperam que o padre condene trajes curtos na igreja. Nunca me senti à vontade para isso. Não é minha praia. Faz anos, após muita cobrança, expliquei: “Gente, não tenho nenhuma competência para a moda. Nem, aliás, para muitas outras coisas. Não se usa longo em praia nem biquíni em casamento. Para uma igreja, o marido, pai, avô, irmão, primo, namorado… da senhora ou da senhorita vejam se a roupa é adequada ou não. Quem convive com elas é que deve opinar sobre o que vestem”).
Voltando às jovens: alcanço-as no semáforo fechado. Antes que ele abra por completo, passam correndo. Um motorista buzina. A mais alta ergue o braço e, sem se importar com os presentes – parece desejar que todos ouçam – grita, o mais forte que pode: “Ah, vá se f…”! Levo um susto. Sou antiquado, reconheço. Entendo palavrão como descortesia, falta de educação. Pelo menos em público. Vindo de mulher, então, é um descalabro. Nos marmanjos, mais desbocados por natureza, surpreende menos. Mas mulher é pessoa fina, nobre, gentil.Continue lendo ›

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Ao Menino Jesus

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoAntes do Natal, crianças escrevem cartinhas ao Papai Noel. Eu, que deixei longe minha infância, escrevo depois do Natal. Não para o Papai Noel, mas para o Menino do presépio. Vai para ele minha última mensagem do ano:
Querido Menino Jesus.
Não sei para você, mas para mim foi bom ter acabado o agito do Natal. Para falar a verdade, tamanho rebuliço já estava me cansando. Não que eu não reconheça o significado do seu nascimento entre nós. Quem sou eu, miserável pecador, para não me extasiar, agradecido, ante o mistério de Deus, que vem ao nosso encontro na doçura de uma criança? Que nos dá o próprio Filho feito humano igual a nós em tudo, menos no pecado? Continue lendo ›

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Eles amam odiar Maringá

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoNão levem a mal a declaração deste caipira: considero minha esta cidade, que amo com ternura ingênua. Para cá vim faz 56 anos. Minha primeira impressão de Maringá foi assustadora, para dizer o mínimo. Era o dia 29 ou 30 de dezembro de 1957, não lembro bem. O ônibus parou na Praça Raposo Tavares. Desci no descampado ainda com marcas de árvores removidas em passado recente. Arregalei os olhos para uma Maringá de poeira, calor e gente feia. E, sem cachê nem ensaio, me vi como um figurante daqueles filmes de faroeste da minha infância.
Eu ia para Alto Paraná. Desde setembro, minha família morava lá. Morar ali ou em Maringá, para mim, era quase a mesma coisa. Eu estudava em Curitiba. Continue lendo ›

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Admiração ou deboche

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoSempre gostei de ler. Desde criança lia tudo o que me caía sob os olhos. Concluído o grupo escolar, antes de ir para o seminário, trabalhei dois meses no Bazar Temer. No meio da infinidade de artigos à venda, descobri alguns livros de aventuras, que assanharam a minha curiosidade. Mais de uma vez o bom Temer, pai da nossa pediatra Elen Nemer, teve a paciência de me explicar que ali eu era funcionário para atender clientes, não leitor de obras de uma biblioteca. Naquela época ninguém fazia restrição ao criterioso emprego de crianças. Era pedagógica forma de inculcar o valor do trabalho, sem o qual nenhuma grandeza, inclusive financeira, se constrói. Na entrada da imponente sede do seu banco, na Cidade de Deus, bairro de Osasco (SP), o lendário Amador Aguiar, fundador do Bradesco, fez erguer a estátua de um burro de carga, sob a qual mandou escrever: “Só o trabalho produz riqueza”. Pena que hoje muitos desejem que a riqueza lhes caia do céu no colo. De preferência, sem que façam esforço algum.Continue lendo ›

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Grandeza que vai acabando

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoTemos a mesma procedência; se não todos, quase todos. Viemos, em grande parte, de Minas ou do interior paulista. Se apreciamos uma generosa carne de porco, talvez o façamos não por elaborada preferência culinária, mas por lembrança do estilo de vida que aprendemos com nossos pais e avós. Na vida roceira em que fomos criados, matar porco era um ritual que envolvia toda a família. Por vezes, até algum vizinho, chamado a ajudar. Era trabalho que começava de manhã bem cedo. A gritaria do animal causava impressão ruim. A mãe tentava impedir que as crianças deixassem a cama para assistir. Se já estavam de pé, aconselhava a que se mantivessem afastados. Não era bom que presenciassem a violência que cabia ao pai executar. Nem deviam sentir pena do bicho. Quanto maior o dó que dele tivessem, tanto mais ele demoraria a morrer. Era a crendice aceita por todos. No fim, as recomendações mostravam-se inúteis. Que moleque ia perder um espetáculo daquele? Pouco depois, lá estavam todos chutando a bexiga do infeliz transformada em bola enchida pelo sopro num canudo de mamona e amarrada num barbante.Continue lendo ›

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O “bom” velhinho

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoA senhora esperou-me atravessar a rua e me deteve: “Foi bom encontrá-lo. Nesta época do ano, lembro sempre seu ensinamento: que Natal é festa do Menino Jesus, não do Papai Noel. Tinha que lhe contar, sabe? Ano passado, levei meu sobrinho ao shopping. Queriam fazê-lo sentar-se no colo do Papai Noel. Ele se recusou. Muito firme, disse: ‘Natal é aniversário do Menino Jesus, não do Papai Noel’. Fiquei feliz de ver como ele aprendeu bem o que a gente ensina em casa”.
O período natalino volta com força e o velho gordo reaparece nas ruas, shoppings e lojas de toda a cidade. Com esse calorão mais forte a cada ano, é preciso coragem para envergar fardão vermelho, botas grossas, vasta barba e cabelos compridos. Continue lendo ›

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Querido Gonzaguinha

orivaldoOutro dia, me dei ao cuidado de conferir a letra de “O que é, o que é?”, imortal samba de Gonzaguinha, falecido há 22 anos (tudo isso já?) em acidente no Sudoeste do nosso Estado. Nunca o tinha feito. Que riqueza de inspiração! Ele bem que podia ter durado mais que os seus poucos 45 anos. Ainda estaria produzindo coisas belíssimas, de valor incontestável. Muito melhores que as tolices de pretensos compositores, que frequentemente nos obrigam a ouvir em altíssimo volume. Sem pedir licença, alguns “donos” das ruas enfiam essas porcarias em nossos ouvidos. Nós, pobres vítimas, que podemos fazer?
Há tempo, venho-me convencendo de que atravessamos a era da mediocridade feliz. Na minha pobríssima opinião – que ninguém pediu, eu sei, e a poucos interessa –, grande parcela da sociedade vai sendo tangida por uma crescente imbecilização feita de desprezo do belo, do bom e do verdadeiro.Continue lendo ›

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Horário de verão

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoEstou correndo o risco de receber paulada dos que pensam de forma diferente. Não sou versado nas ciências que tratam do assunto. Ainda assim, me arrisco a palpitar sobre o horário de verão, já em vigor. “Livre pensar é só pensar”, dizia Millôr. Exerço o direito de reclamar à toa, o “jus sperneandi”.
Não gosto desse horário. Jamais gostei. E não sou o único. Ele coleciona inimigos, assim como defensores, não sei em que proporção. Na Câmara dos Deputados repousam três projetos de lei, à espera da chance de o mandarem todos sabem para onde. Sinal de que também o detestam pessoas bem mais importantes que este obscuro escriba.
Todo ano, no terceiro domingo de outubro, desce um pesado mal-estar sobre meu corpo que, há tempo, consumiu os anos radiosos da juventude. Confesso que a primeira semana é braba. Depois, pouco a pouco, a máquina se adapta. Assim mesmo, pegando só no tranco. E contando os dias que faltam para o terceiro domingo do fevereiro seguinte.Continue lendo ›

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Honestidade

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoSaiu em dezenas de publicações deste Brasil tão precisado de boas notícias. Deu até no Jornal Nacional. Prova de que o fato está fora dos padrões convencionais. É uma daquelas coisas que parecem impossíveis de acontecer por aqui. Que, contadas, as pessoas vão chamar de lorota. Mas não é. É pura verdade.
Aconteceu em Jales, cidade de 50.000 habitantes, no noroeste paulista, distante 590 km da capital do Estado. Quando de sua elevação a município, há mais de 60 anos, minha família morava lá. Na época, era apenas um montinho mal ajeitado de casas. Os moradores não iam além de poucos milhares. Ainda assim, porque seis vilarejos, espalhados em derredor, foram-lhe atribuídos como distritos a fim de assegurar população necessária ao seu novo status. Pois essa é a Jales, que, por esses dias, veio nos devolver a fé na pureza da raça humana, que ainda tem integridade, sim. Pelo menos, alguns dos seus representantes.Continue lendo ›

Crônica

A fila do SUS

Do padre Orivaldo Robles:
Quando pároco de Santa Maria Goretti, uma das três missas de domingo eu celebrava às sete da manhã. A assembleia compunha-se, na sua maioria, de pessoas cinquentenárias. Facilmente se via que não era a missa de maior participação dos jovens. Boa parte deles, após uma noite de balada, estava voltando para casa, enquanto os pais se preparavam para ir à igreja. Por brincadeira, até os frequentadores chamavam-na a “missa da tosse”. De maio a agosto, época do frio, era difícil discordar do ruidoso apelido.
Agora, na Catedral, eu celebro a primeira missa de domingo às sete e meia. Chego antes, por volta de seis e quinze. Com tempo para oração da manhã, uma repassada nos textos litúrgicos e uma curta meditação que faço aos agentes da celebração eucarística. Há cerca de dois meses, eu é que me vejo dando motivo para esta missa fazer-se conhecida pelo hilário nome. Com a Catedral ainda vazia, minhas ruidosas explosões bronquiais por pouco não sacodem as paredes. Ainda bem que são de concreto.Continue lendo ›

Crônica

O regente de algum coral do céu

Do padre Orivaldo Roboes:

Frei José Luiz Prim
Frei José Luiz Prim

Mal chegado da roça, aos doze anos, fui apresentado à música erudita. Os padres do nosso seminário, em São José do Rio Preto, eram holandeses e nos passavam a sua cultura. Assim, tive meu primeiro contato com “Schlafe, mein Prinzchen”, conhecida (por aqui nem tanto) canção de ninar de Mozart. Ouvi-a num disco de 78 r. p. m., na interpretação dos Meninos Cantores de Viena, um dos mais competentes corais infantis do mundo. Foi o coro inspirador de frei Leo Bienias para criar aquele que é, atualmente, o mais antigo coral infantil do Brasil e integrante da Federação Internacional dos Meninos Cantores. Ele nasceu no dia 15 de agosto de 1942 como um corinho modesto. Mas o frade alemão naturalizado brasileiro conseguiu transformá-lo no Instituto Meninos Cantores de Petrópolis. Compõe-se de duas partes distintas e unidas entre si: o Colégio dos “Canarinhos” e a Escola de Música “Canarinhos”. A preocupação de Frei Leto era produzir canto coral de qualidade artística para, como principal atividade, cantar aos domingos na missa da igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis. Por 30 anos, praticamente sozinho, Frei Leto ensaiou e dirigiu o coral de meninos. Cansado, pediu a Frei José Luiz Prim que o substituísse. Formado em música, compositor e regente, Prim aceitou o encargo. E fez dos Canarinhos um dos mais respeitados corais infantis do mundo.Continue lendo ›

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O Dom Jaime que conheci

Do padre Orivaldo Robles:
domjaimeCom ele convivi 55 anos. Figura incrível. Prefiro dele não me lembrar com tristeza. A seguir, duas passagens. Uma dolorida e jocosa; outra séria. Ambas verídicas. Escrevi-as em 2006:
1. Primeiros anos da Diocese. Maringá não tinha água tratada. Dom Jaime apanhou terrível infecção intestinal, uma giardíase que o acompanhou por longos e sofridos anos. Para ele as visitas pastorais, que jamais deixou, passaram a ser um suplício. Perdeu a conta das vezes que, em capelas rurais onde estava crismando, ao necessitar de um banheiro, verificava que simplesmente não existia tal peça. Por desoladora experiência comprovou a triste verdade do que é relatado como anedota, mas pode bem ter acontecido. Lá no sertão baiano, segundo contam, ter-se-ia um bispo hospedado em casa de rico fazendeiro, senhor de muitas terras e gado, mas de cultura pouca e de hábitos rudimentares. Não vendo nos aposentos nenhum sinal de sanitários, delicadamente o bispo foi informar-se com o anfitrião. O fazendeiro, chamando-o fora, estendeu o braço e apontou: “Olhe, seu bispo, daqui até o Piauí o senhor use à vontade”. Continue lendo ›

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O papa no Brasil

papa
Do padre Orivaldo Robles:
Ainda por muito tempo se falará da visita do papa Francisco. Para os mais velhos ela lembrou a primeira visita de um papa ao Brasil. Foi a de João Paulo 2°, em 1980. Tudo era novidade então. A começar pelo beijo no solo do aeroporto, ao desembarcar, em 30 de junho. No espaço de 12 dias, ele percorreu 14 mil quilômetros e 13 cidades: Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Aparecida, Porto Alegre, Curitiba, Manaus, Recife, Salvador, Belém, Teresina e Fortaleza. Uma das mais longas de suas 207 viagens apostólicas, nos quase 27 anos de pontificado (1978-2005). Algumas foram curtas, para o interior da Itália. Assim mesmo, comparado aos predecessores, Karol Wojtyla viajou mais do que todos juntos, de São Pedro a João Paulo 1°. Continue lendo ›

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“Ao mestre, com carinho”

domjaime
Do padre Orivaldo Robles:
1. No dia 29 de novembro (de 1956), lida a carta da nunciatura, uma curiosidade cheia de medo o fez consultar o mapa, investindo largo tempo no inútil esforço de localizar a cidade na qual viveria o resto dos seus dias. Maringá era por demais nova para figurar em mapas com mais de cinco anos, caso daquele que tinha em mãos. Naquele tempo, em toda Ribeirão Preto, como, de resto, possivelmente em todo o Brasil, ninguém conseguiria localizar em mapa aquela que seria denominada “cidade-canção”.Continue lendo ›

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O bom rabi e o cão

Do padre Orivaldo Robles:
caoUma fábula oriental conta que, nos arredores de Jerusalém, várias pessoas distraíam-se a contemplar um cão morto, estirado no caminho. Mostravam nojo e desprezo, ao tempo em que emitiam opiniões sobre o motivo de o terem arrastado até ali. “Deve ter sido um daqueles cães vagabundos, que invadem quintais para roubar comida”, disse um. “Com esse pelo coberto de rabugem, bem se vê que foi um cão vadio, que nunca teve dono”, arriscou outro. Um terceiro emendou: “Vai ver, algum morador da redondeza o matou e abandonou-o aí para os corvos”. Essas e ideias de igual teor eram expostas em voz alta e sem disfarce. Foi quando se achegou um desconhecido. Seu rosto refletia luz invulgar, que atraía atenção e respeito. Estava claro que ouvira os comentários feitos. Lançou sobre o animal morto um olhar de piedade e arrematou com doçura: “Nenhuma pérola seria capaz de brilhar tanto como a brancura dos seus dentes”.Continue lendo ›