padre orivaldo robles

Crônica

Uma para cada dois

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoFato bastante curioso, entre os muitos da minha longa atividade pastoral, foi a celebração das bodas de ouro (50 anos) de união de um casal amigo. Alguns dirão: “Grande coisa; qualquer padre faz isso”. Calma; não terminei. Dez anos depois, os filhos pediram a missa em ação de graças, desta vez, pelos 60 anos de matrimônio dos pais. Ainda não contei tudo. Outros dez anos passados e me pediram a celebração dos 70 anos da mesma união. Desse tipo foi o único caso que me aconteceu. E não haverá outro.
Quem esteve naquele 70° aniversário de casamento não esquecerá o que presenciou. A esposa sofria do mal de Alzheimer. Com mais de 90 anos de idade, o marido a tratava com uma ternura comovente. Ele quis ler em público uma oração que tinha preparado para a ocasião.
Agradeceu a Deus pelos filhos numerosos, todos vivos, honrados e motivo de orgulho para os pais. Depois, rendeu graças pela companheira de tantos anos. Continue lendo ›

Crônica

A nova Páscoa

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoQuem passou a infância na roça, há mais de 60 anos, e sem referencial católico, como eu, lembra como era a semana santa. Coelho, chocolate, Páscoa, nem pensar. Ressurreição de Cristo, batismo, muito menos. Festa era o Natal, único dia do ano em que víamos guaraná. Furávamos a tampa da garrafinha e por ali a sugávamos para durar mais. Era também o dia da sobremesa, do manjar branco com calda de coco. Sem ameixa, que não chegava à venda da cidadezinha em que morávamos. Maravilha que só a mãe sabia fazer. Seu odor impregnava a casa inteira e seu paladar era único. Depois que a mãe, idosa e doente, parou de fazê-lo, não voltei a sentir aquele gosto em nenhum outro. Menos ainda nesses comprados, que já vêm prontos, em potinhos de plástico, com calda vermelha por cima. Servem para iludir as crianças, que jamais terão a chance de saborear a delícia antiga, que a mãe cozia no fogão de lenha.
Ah, sim, eu falava da Páscoa, festa máxima do calendário cristão, sobre a qual, na infância, não recebi informação. Nem eu nem os outros jacuzinhos, que moravam numa colônia de café. Ou em sítios da redondeza. Continue lendo ›

Crônica

A Quaresma

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoEstamos no final da Quaresma. Ela termina com a missa da Ceia do Senhor, na quinta-feira santa. Não estranhem meus poucos e bondosos leitores que eu comente sobre religião. É assunto normal para um padre, não?
A Quaresma está no fim e, pelo que tenho conhecimento, ninguém topou com algum lobisomem. Nem conheceu quem tenha visto um. Pelo menos nestas paragens e por esses dias. Em tempos passados, quando nossos pais moravam no sítio, se, em horas perdidas de uma de noite sexta-feira da Quaresma, os cachorros latissem e rosnassem com ferocidade, dentro de casa as pessoas arrepiavam-se e sentiam um frio na espinha. Só podia ser o lobisomem, cujo hábito era justamente vagar durante a Quaresma, sempre pela meia-noite das sextas-feiras.Continue lendo ›

Crônica

O corcel de dom Jaime

padreorivaldoJá está em casa, de volta, o corcel preto de Dom Jaime localizado em Goioerê. Ladrão estabanado: foi roubar logo o carro mais conhecido de Maringá!
Enquanto gozou de saúde, Dom Jaime nunca teve motorista. Gostava de dirigir. Primeiro, a perua cinza recebida na chegada, em março de 1957, do prefeito Américo Dias Ferraz. Era uma picape Willys, adaptada para imitar a Willys Station Wagon, precursora da nossa Rural Willys de saudosa lembrança. Não sei por quanto tempo ele manteve a famosa “perua do bispo”. Num ponto Dom Jaime não tinha vaidade: passava anos sem trocar de carro.
Quando os valentes jipes deram lugar aos primeiros fuscas, ele não viu muita graça na mudança. Acho que o assustou a visão do corpulento Dom Gregório Warmeling, bispo de Joinville, dentro de um. Encontrando-o, um dia, ao volante do próprio fusca, Dom Jaime não aguentou: “Dom Gregório, como o senhor entrou aí? De calçadeira?”. Preferiu um DKW Belcar branco, com o qual rodou por anos a fio. Não me lembro de outros carros. Até que ele adquiriu o corcel preto 1975.Continue lendo ›

Crônica

Lágrimas de homem

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoSe, como dizem, homem não chora, estou mal na foto. Por muito pouco, mesmo com esforço para segurar, acabo caindo no choro. Justifico-me apelando para as sete décadas que carrego nas costas. Idosos são emocionalmente mais frágeis que jovens. O duro é que no meu caso deve ser não consequência da idade, mas jeito da madeira. Minha saída de Paranacity foi prova clara. Eu estava com trinta anos. No discurso de despedida daquele povo que eu tanto amava, destampei numa choradeira inconsolável. Não consegui pronunciar mais que três ou quatro palavras. Dei um vexame histórico.
Remexendo o fundo do baú de meu coração mole, encontro o pesar imenso que me causa a dor especialmente de crianças. O sofrimento desses inocentes – ah, não dá – me engrola a língua e me arranca lágrimas. Isso vem de longe. Continue lendo ›

Crônica

Como irmãos

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoA historieta a seguir alguns já leram no livro “A Igreja que brotou da mata”, que lancei em março de 2007. É verdadeira.
Nos anos 90, a Paróquia São José, da Vila Operária, foi confiada a Padre Silvino Pedro Rabuske. Corpulento feito um guarda-roupa de casal e bem jovem, nós o chamávamos Pedrinho, por causa da cara de menino. Seu auxiliar, Padre Arthur Frantz, passava dos setenta. Ambos jesuítas, de sólida formação e disciplina, era um mistério como se entendiam sob o mesmo teto. Não é comum o jovem ser o superior do idoso. Pelo menos se têm idades tão diferentes. Um dia, não contendo a curiosidade, uma senhora animou-se a perguntar: “Padre Arthur, o senhor tem mais de setenta anos; Padre Pedrinho, uns trinta. Trabalham juntos. Vocês nunca discutem? Como é que se entendem?”. Com graciosa serenidade o velho padre respondeu: “Não há nenhum problema. Vivemos como irmãos”. E para deixar bem claro, completou: “Brigamos todos os dias”.Continue lendo ›

Crônica

Na infância tudo se decide

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoEntre as muitas coisas que aprendi em criança, uma, que me marcou de modo indelével, foi a preocupação com o bem-estar alheio, com o respeito devido aos outros. Já tive oportunidade de comentar o conselho que o pai não se cansava de nos repetir: “Não sejais pesados a ninguém”. Embora homem do campo, que não frequentara bancos escolares, havia conquistado, não sei onde nem como, uma sabedoria que universidade nenhuma ensina. Era incapaz de conduta ou gesto que ferisse o direito ou até a simples preferência de alguém. Não que ele assumisse postura subserviente. Possuía clara consciência de seus direitos. Se deles chegava a abrir mão – como, mais de uma vez, pude comprovar, – fazia-o em razão de uma naturalidade que lhe brotava de dentro, de uma generosidade inata; nunca por covardia ou temor. Com tal protótipo sempre ao lado, enquanto nós crescíamos, seria mesmo difícil não nos deixarmos moldar por ele. Há gestos que ainda agora, a três décadas de sua morte, os filhos recusam praticar. Não tanto, creio, por virtude própria, senão mais pelo que ele nos deixou como exemplo. Vimos nele a importância de crer, desde muito cedo, que a grandeza de alguém independe de certos atributos hoje, infelizmente, muito valorizados.Continue lendo ›

Crônica

O sabiá

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldo“Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá;/As aves que aqui gorjeiam/Não gorjeiam como lá”. Fosse o seu Maranhão dominado, como hoje, pelo clã Sarney, é provável que Gonçalves Dias não visse Coimbra como exílio, mesmo tendo lá vivido como estudante, dos 15 aos 22 anos. Nem talvez sentisse muita saudade.
Desconheço que palmeiras eram as de Caxias (MA), sua terra. Não, com certeza, as garbosas palmeiras imperiais da nossa Avenida 15 de Novembro. Imperiais porque o primeiro exemplar foi plantado por Dom João 6°, no Jardim Botânico do Rio, em 1809.
Para cantar sabiá prefere mesmo palmeira? Durante muito tempo, bem cedinho, na Avenida 15 de Novembro, encantou-me a melodia de um sabiá-laranjeira. Nunca percebi se cantava em palmeira ou noutra árvore. Pela “Canção do Exílio” tinha que ser numa palmeira. Muitas vezes tentei, mas jamais o vi na folhagem daquela altura. Sabia esconder-se o espertinho. Lá no alto emitia seu gorjeio, que musicava minha manhã nascente. Assim foi por meses, nem sei quantos.Continue lendo ›

Crônica

O palavrão

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoTarde de um domingo destes. Caminho para a Catedral. Em minha direção, na calçada, vêm dois rapazes. A todo instante olham para trás com um sorriso maroto. Lá adiante, o motivo: três garotas em shortinhos sumários, que só não revelam pensamento. É a moda, que fazer? Ninguém lhe resiste. (A propósito, alguns esperam que o padre condene trajes curtos na igreja. Nunca me senti à vontade para isso. Não é minha praia. Faz anos, após muita cobrança, expliquei: “Gente, não tenho nenhuma competência para a moda. Nem, aliás, para muitas outras coisas. Não se usa longo em praia nem biquíni em casamento. Para uma igreja, o marido, pai, avô, irmão, primo, namorado… da senhora ou da senhorita vejam se a roupa é adequada ou não. Quem convive com elas é que deve opinar sobre o que vestem”).
Voltando às jovens: alcanço-as no semáforo fechado. Antes que ele abra por completo, passam correndo. Um motorista buzina. A mais alta ergue o braço e, sem se importar com os presentes – parece desejar que todos ouçam – grita, o mais forte que pode: “Ah, vá se f…”! Levo um susto. Sou antiquado, reconheço. Entendo palavrão como descortesia, falta de educação. Pelo menos em público. Vindo de mulher, então, é um descalabro. Nos marmanjos, mais desbocados por natureza, surpreende menos. Mas mulher é pessoa fina, nobre, gentil.Continue lendo ›

Blog

Dando um tempo

O padre Orivaldo Robles, cujas crônicas são acompanhadas semanalmente por muitos leitores, vai dar um tempo. Será apenas em janeiro, felizmente, aproveitando o início do ano. Possivelmente em fevereiro ele voltará a produzir os textos, que este modesto blog também reproduz.

Crônica

Ao Menino Jesus

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoAntes do Natal, crianças escrevem cartinhas ao Papai Noel. Eu, que deixei longe minha infância, escrevo depois do Natal. Não para o Papai Noel, mas para o Menino do presépio. Vai para ele minha última mensagem do ano:
Querido Menino Jesus.
Não sei para você, mas para mim foi bom ter acabado o agito do Natal. Para falar a verdade, tamanho rebuliço já estava me cansando. Não que eu não reconheça o significado do seu nascimento entre nós. Quem sou eu, miserável pecador, para não me extasiar, agradecido, ante o mistério de Deus, que vem ao nosso encontro na doçura de uma criança? Que nos dá o próprio Filho feito humano igual a nós em tudo, menos no pecado? Continue lendo ›

Crônica

Eles amam odiar Maringá

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoNão levem a mal a declaração deste caipira: considero minha esta cidade, que amo com ternura ingênua. Para cá vim faz 56 anos. Minha primeira impressão de Maringá foi assustadora, para dizer o mínimo. Era o dia 29 ou 30 de dezembro de 1957, não lembro bem. O ônibus parou na Praça Raposo Tavares. Desci no descampado ainda com marcas de árvores removidas em passado recente. Arregalei os olhos para uma Maringá de poeira, calor e gente feia. E, sem cachê nem ensaio, me vi como um figurante daqueles filmes de faroeste da minha infância.
Eu ia para Alto Paraná. Desde setembro, minha família morava lá. Morar ali ou em Maringá, para mim, era quase a mesma coisa. Eu estudava em Curitiba. Continue lendo ›

Crônica

Comunicações

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoAlguém aí é do tempo em que Paulo Pimentel governou o Paraná? Quando secretário da Agricultura (1961-65) iniciou o aprimoramento do rebanho bovino. Apelidaram-no Paulo Nelore. Uma de suas marcas como governador (1966-71) foi o avanço das comunicações telefônicas. Antes, era um custo falar com São Paulo ou Rio. Com o Exterior, só se a vítima tivesse a paciência de Jó. Pimentel imprimiu à telefonia paranaense grande salto de qualidade. DDD e DDI, que pouca gente sabia o que significavam, passaram a integrar o vocabulário de qualquer capiau desta região. Atualmente, acostumados a ligar, sem dificuldade nem demora, para qualquer parte do mundo, os jovens nem se interessam pelo sentido dessas siglas. Precisam de tradução. Sobreviventes de outras eras, nós sabemos que elas querem dizer, respectivamente, discagem direta à distância e discagem direta internacional. É bom que todos aprendam. Vá que algum examinador invente de colocá-las entre as questões de concurso que, um dia, alguém venha a prestar. Nunca se sabe.Continue lendo ›

Crônica

Admiração ou deboche

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoSempre gostei de ler. Desde criança lia tudo o que me caía sob os olhos. Concluído o grupo escolar, antes de ir para o seminário, trabalhei dois meses no Bazar Temer. No meio da infinidade de artigos à venda, descobri alguns livros de aventuras, que assanharam a minha curiosidade. Mais de uma vez o bom Temer, pai da nossa pediatra Elen Nemer, teve a paciência de me explicar que ali eu era funcionário para atender clientes, não leitor de obras de uma biblioteca. Naquela época ninguém fazia restrição ao criterioso emprego de crianças. Era pedagógica forma de inculcar o valor do trabalho, sem o qual nenhuma grandeza, inclusive financeira, se constrói. Na entrada da imponente sede do seu banco, na Cidade de Deus, bairro de Osasco (SP), o lendário Amador Aguiar, fundador do Bradesco, fez erguer a estátua de um burro de carga, sob a qual mandou escrever: “Só o trabalho produz riqueza”. Pena que hoje muitos desejem que a riqueza lhes caia do céu no colo. De preferência, sem que façam esforço algum.Continue lendo ›

Crônica

Grandeza que vai acabando

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoTemos a mesma procedência; se não todos, quase todos. Viemos, em grande parte, de Minas ou do interior paulista. Se apreciamos uma generosa carne de porco, talvez o façamos não por elaborada preferência culinária, mas por lembrança do estilo de vida que aprendemos com nossos pais e avós. Na vida roceira em que fomos criados, matar porco era um ritual que envolvia toda a família. Por vezes, até algum vizinho, chamado a ajudar. Era trabalho que começava de manhã bem cedo. A gritaria do animal causava impressão ruim. A mãe tentava impedir que as crianças deixassem a cama para assistir. Se já estavam de pé, aconselhava a que se mantivessem afastados. Não era bom que presenciassem a violência que cabia ao pai executar. Nem deviam sentir pena do bicho. Quanto maior o dó que dele tivessem, tanto mais ele demoraria a morrer. Era a crendice aceita por todos. No fim, as recomendações mostravam-se inúteis. Que moleque ia perder um espetáculo daquele? Pouco depois, lá estavam todos chutando a bexiga do infeliz transformada em bola enchida pelo sopro num canudo de mamona e amarrada num barbante.Continue lendo ›

Crônica

Ainda as mães meninas

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoPerde-se nas trevas de um passado que ninguém conheceu ou lembra a época em que nossas avós se casavam com 12 ou 13 anos de idade. Aos 14, já carregavam nos braços o primeiro filho. Nem por isso elas deixavam de dar conta da casa, de cozinhar, lavar, passar, fazer sabão, criar galinhas, amassar pão… e uma infinidade de outras obrigações. Ninguém ouvira ainda falar sobre creche, babá, “baby-sitter”, essas coisas. Com muita sorte, a mãe adolescente, se tanto, recebia ajuda de uma criança pouco mais nova do que ela – irmã, prima ou vizinha – a quem, por instantes, confiava seu nenê. Contudo, o que arrumava, muitas vezes, era nova fonte de preocupação. Essa adulta de 14 anos passava a ter duas crianças sob seus cuidados.
Passou o tempo. Os costumes mudaram. A vida hoje é diferente. Quando nos procuram para tratar de casamento, os jovens andam por volta dos 30 anos. Continue lendo ›

Crônica

Como ser chique

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoMuita gente vive preocupada em ser reconhecida como elegante, fina, requintada ou, como ainda se diz, chique. Ser chique é agir de modo apreciado pelas figuras que povoam as altas rodas às quais ascenderam pelo dinheiro e pela aceitação dos outros. Em todas as cidades, até nas pequeninas e de menor importância econômico-político-social, encontram-se homens e mulheres muito interessados em pontear como a nata da sociedade local. Desenvolvem um esforço colossal para causarem boa impressão. Para granjear entre os seus concidadãos a admiração e o aplauso sem os quais a vida lhes parece uma coisa sem graça, penosa de ser vivida. No mundo inteiro, pelo que se percebe, há pessoas para quem a opinião alheia pesa mais do que as próprias convicções.
No passado, tempo em que as oceânicas distâncias impediam o acesso às fontes europeias da cultura e da elegância, as famílias abastadas destas rudes plagas enviavam os filhos à França, berço da “noblesse” e do conhecimento de então. Nossa fonte cultural, como os mais vividos recordam, desde então, recende os seus inegáveis eflúvios franceses. Só nas últimas décadas é que se impôs o domínio cultural norte-americano, que hoje todos conhecemos. Continue lendo ›

Crônica

Horário de verão

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoEstou correndo o risco de receber paulada dos que pensam de forma diferente. Não sou versado nas ciências que tratam do assunto. Ainda assim, me arrisco a palpitar sobre o horário de verão, já em vigor. “Livre pensar é só pensar”, dizia Millôr. Exerço o direito de reclamar à toa, o “jus sperneandi”.
Não gosto desse horário. Jamais gostei. E não sou o único. Ele coleciona inimigos, assim como defensores, não sei em que proporção. Na Câmara dos Deputados repousam três projetos de lei, à espera da chance de o mandarem todos sabem para onde. Sinal de que também o detestam pessoas bem mais importantes que este obscuro escriba.
Todo ano, no terceiro domingo de outubro, desce um pesado mal-estar sobre meu corpo que, há tempo, consumiu os anos radiosos da juventude. Confesso que a primeira semana é braba. Depois, pouco a pouco, a máquina se adapta. Assim mesmo, pegando só no tranco. E contando os dias que faltam para o terceiro domingo do fevereiro seguinte.Continue lendo ›

Crônica

Honestidade

Do padre Orivaldo Robles:
orivaldoSaiu em dezenas de publicações deste Brasil tão precisado de boas notícias. Deu até no Jornal Nacional. Prova de que o fato está fora dos padrões convencionais. É uma daquelas coisas que parecem impossíveis de acontecer por aqui. Que, contadas, as pessoas vão chamar de lorota. Mas não é. É pura verdade.
Aconteceu em Jales, cidade de 50.000 habitantes, no noroeste paulista, distante 590 km da capital do Estado. Quando de sua elevação a município, há mais de 60 anos, minha família morava lá. Na época, era apenas um montinho mal ajeitado de casas. Os moradores não iam além de poucos milhares. Ainda assim, porque seis vilarejos, espalhados em derredor, foram-lhe atribuídos como distritos a fim de assegurar população necessária ao seu novo status. Pois essa é a Jales, que, por esses dias, veio nos devolver a fé na pureza da raça humana, que ainda tem integridade, sim. Pelo menos, alguns dos seus representantes.Continue lendo ›

Crônica

O regente de algum coral do céu

Do padre Orivaldo Roboes:

Frei José Luiz Prim
Frei José Luiz Prim

Mal chegado da roça, aos doze anos, fui apresentado à música erudita. Os padres do nosso seminário, em São José do Rio Preto, eram holandeses e nos passavam a sua cultura. Assim, tive meu primeiro contato com “Schlafe, mein Prinzchen”, conhecida (por aqui nem tanto) canção de ninar de Mozart. Ouvi-a num disco de 78 r. p. m., na interpretação dos Meninos Cantores de Viena, um dos mais competentes corais infantis do mundo. Foi o coro inspirador de frei Leo Bienias para criar aquele que é, atualmente, o mais antigo coral infantil do Brasil e integrante da Federação Internacional dos Meninos Cantores. Ele nasceu no dia 15 de agosto de 1942 como um corinho modesto. Mas o frade alemão naturalizado brasileiro conseguiu transformá-lo no Instituto Meninos Cantores de Petrópolis. Compõe-se de duas partes distintas e unidas entre si: o Colégio dos “Canarinhos” e a Escola de Música “Canarinhos”. A preocupação de Frei Leto era produzir canto coral de qualidade artística para, como principal atividade, cantar aos domingos na missa da igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis. Por 30 anos, praticamente sozinho, Frei Leto ensaiou e dirigiu o coral de meninos. Cansado, pediu a Frei José Luiz Prim que o substituísse. Formado em música, compositor e regente, Prim aceitou o encargo. E fez dos Canarinhos um dos mais respeitados corais infantis do mundo.Continue lendo ›

Memória

Baú do blog

Padre Orivaldo
Padre Orivaldo Robles em reportagem publicada no Correio da Cidade (projeto meu e de Lourivaldo Cesário, e posteriormente entregue a Carlos Alberto de Paula) em abril de 1985.

Crônica

O Dom Jaime que conheci

Do padre Orivaldo Robles:
domjaimeCom ele convivi 55 anos. Figura incrível. Prefiro dele não me lembrar com tristeza. A seguir, duas passagens. Uma dolorida e jocosa; outra séria. Ambas verídicas. Escrevi-as em 2006:
1. Primeiros anos da Diocese. Maringá não tinha água tratada. Dom Jaime apanhou terrível infecção intestinal, uma giardíase que o acompanhou por longos e sofridos anos. Para ele as visitas pastorais, que jamais deixou, passaram a ser um suplício. Perdeu a conta das vezes que, em capelas rurais onde estava crismando, ao necessitar de um banheiro, verificava que simplesmente não existia tal peça. Por desoladora experiência comprovou a triste verdade do que é relatado como anedota, mas pode bem ter acontecido. Lá no sertão baiano, segundo contam, ter-se-ia um bispo hospedado em casa de rico fazendeiro, senhor de muitas terras e gado, mas de cultura pouca e de hábitos rudimentares. Não vendo nos aposentos nenhum sinal de sanitários, delicadamente o bispo foi informar-se com o anfitrião. O fazendeiro, chamando-o fora, estendeu o braço e apontou: “Olhe, seu bispo, daqui até o Piauí o senhor use à vontade”. Continue lendo ›

Crônica

O papa no Brasil

papa
Do padre Orivaldo Robles:
Ainda por muito tempo se falará da visita do papa Francisco. Para os mais velhos ela lembrou a primeira visita de um papa ao Brasil. Foi a de João Paulo 2°, em 1980. Tudo era novidade então. A começar pelo beijo no solo do aeroporto, ao desembarcar, em 30 de junho. No espaço de 12 dias, ele percorreu 14 mil quilômetros e 13 cidades: Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Aparecida, Porto Alegre, Curitiba, Manaus, Recife, Salvador, Belém, Teresina e Fortaleza. Uma das mais longas de suas 207 viagens apostólicas, nos quase 27 anos de pontificado (1978-2005). Algumas foram curtas, para o interior da Itália. Assim mesmo, comparado aos predecessores, Karol Wojtyla viajou mais do que todos juntos, de São Pedro a João Paulo 1°. Continue lendo ›

Crônica

“Ao mestre, com carinho”

domjaime
Do padre Orivaldo Robles:
1. No dia 29 de novembro (de 1956), lida a carta da nunciatura, uma curiosidade cheia de medo o fez consultar o mapa, investindo largo tempo no inútil esforço de localizar a cidade na qual viveria o resto dos seus dias. Maringá era por demais nova para figurar em mapas com mais de cinco anos, caso daquele que tinha em mãos. Naquele tempo, em toda Ribeirão Preto, como, de resto, possivelmente em todo o Brasil, ninguém conseguiria localizar em mapa aquela que seria denominada “cidade-canção”.Continue lendo ›

Crônica

O bom rabi e o cão

Do padre Orivaldo Robles:
caoUma fábula oriental conta que, nos arredores de Jerusalém, várias pessoas distraíam-se a contemplar um cão morto, estirado no caminho. Mostravam nojo e desprezo, ao tempo em que emitiam opiniões sobre o motivo de o terem arrastado até ali. “Deve ter sido um daqueles cães vagabundos, que invadem quintais para roubar comida”, disse um. “Com esse pelo coberto de rabugem, bem se vê que foi um cão vadio, que nunca teve dono”, arriscou outro. Um terceiro emendou: “Vai ver, algum morador da redondeza o matou e abandonou-o aí para os corvos”. Essas e ideias de igual teor eram expostas em voz alta e sem disfarce. Foi quando se achegou um desconhecido. Seu rosto refletia luz invulgar, que atraía atenção e respeito. Estava claro que ouvira os comentários feitos. Lançou sobre o animal morto um olhar de piedade e arrematou com doçura: “Nenhuma pérola seria capaz de brilhar tanto como a brancura dos seus dentes”.Continue lendo ›

Crônica

O profeta e a cidade

manifestação
Do padre Orivaldo Robles:
O profeta é um visionário. Seu olhar penetra o que a outros é inatingível. Ele colhe na intimidade com Deus o talento para ditos que encantam. É vizinho, senão gêmeo do poeta. Como este, transmite noções com um talento que embasbaca. À gente ignara ocorre, por vezes: “Como não pensei nisso”? Mas dom é dom: não se dá a quem quer. Nada se faz por merecê-lo. Quem o possui simplesmente o ganhou. Para desfrute não de proveito pessoal, mas aberto ao bem de todos. No século 8° a. C., em anúncio dos tempos messiânicos, Isaías formulou uma proposta assombrosa. E, ao mesmo tempo, encantadora: “O lobo será hóspede do cordeiro, o leopardo vai se deitar ao lado do cabrito. O bezerro e o leãozinho pastarão juntos; uma criança pequena tangerá os dois. O urso e a vaca pastarão unidos, enquanto suas crias descansarão lado a lado. O leão comerá capim como o boi. O bebê vai brincar no covil da víbora; a criancinha enfiará a mão na toca da serpente” (Is 11,6-8). A quem não sensibiliza o lirismo da descrição? Continue lendo ›

Crônica

“Vem pra rua!”

Do padre Orivaldo Robles:
Terça-feira passada, dezessete e trinta, mais ou menos. Nariz pingando como torneira que não fecha, eu ia apressado à farmácia do canto da praça. Faz tempo, me deram um cartão da melhor idade. Melhor para quem? Para os laboratórios, com certeza. São os que lucram com nossas doenças. O cartão me dá pequeno desconto. Não posso desprezar; tomo uma batelada de remédios de uso contínuo.
Enquanto caminhava, eu ouvia o alto-falante convocando as pessoas para o início da manifestação. Lamentei a coriza e o mal-estar que sentia. Mais que isso, porém, lamentei não possuir a disposição de 1992, da caminhada pelo impeachment do presidente Collor. Naquela vez, saí às ruas no meio de uma multidão composta, em sua maioria, por adolescentes conhecidos como “caras pintadas”. Pintaram a minha também. Tempo bom. Não há setentão que não recorde com gosto a vida que levava há vinte anos. Desta vez, tomei direto o rumo de casa. Nas ruas, jovens risonhos – de novo, quase todos adolescentes – portavam cartazes pintados à mão. Riam e aprontavam todo o barulho que a hora e o lugar lhes permitiam.Continue lendo ›

Crônica

Namorados

Do padre Orivaldo Robles:
Minha cidade, no interior paulista, ostenta na única praça, a da matriz, uma estátua de Santo Antônio. Estátua em praça não é novidade. Em Curitiba, na praça da Catedral, há uma estátua de Tiradentes. A da minha cidade foi doada por Durvalino Magrini e inaugurada, nos anos 50, diante de um colosso de gente. Um frade franciscano português, convidado para o evento, em seu discurso, várias vezes, falou de Santo Antônio de Lisboa. Deixou-me confuso. O padroeiro do lugar era Santo Antônio de Pádua, único que até ali eu tinha ouvido. Mais tarde vim saber que ele era natural de Lisboa. Morrera em Pádua, na Itália, daí a designação pela qual é conhecido. Mas tente convencer um português a chamá-lo Santo Antônio de Pádua!Continue lendo ›

Crônica

O pica-pau

Do pare Orivaldo Robles:
Numa dessas manhãs, no meio das poucas árvores da Praça da Catedral, ouvi pipilar um pica-pau. Um não; dois. Um piava, outro respondia. Corriam pela grama, alçavam voos curtos, subiam às copas das árvores. Um casal, sem dúvida, em busca de lugar para construir o ninho. Devem ter ido embora decepcionados. Não cresce ali mais nenhuma palmeira decente que mereça o furo do seu afiado bico. Nada parecido com a fartura de que dispunham seus ancestrais. Quem morou na roça recorda os coqueiros no meio do pasto, duros como ferro e altos como prédios. Os pica-paus os martelavam até perfurar um orifício redondo e fundo. Com uma capacidade fabulosa de escutar – ouvem larvas ou insetos movendo-se no interior do tronco – cavam o caminho até sua refeição, além de providenciar a maternidade onde nascerão seus descendentes. Para pôr ovos e criar filhotes, não sei de outro pássaro, tirante o joão-de-barro, capaz de construir uma casa tão segura.Continue lendo ›

Crônica

Para onde foi o silêncio?

Do padre Orivaldo Robles:
padreorivaldoOutro dia, nos dois lados da calçada à minha frente, contei seis pessoas falando ao celular. Não olhei para trás. É provável que outras estivessem fazendo o mesmo. O leitor já deve ter visto alguém conversando na rua, mas não percebeu com quem. Fique tranquilo. Não é nenhum daqueles infelizes que conversam sozinhos. Pode ver que ele mantém um aparelhinho colado na orelha. Existem até adaptações que permitem falar deixando as mãos livres. Inventadas, quem sabe, por algum italiano, que gosta de conversar agitando os braços, feito um helicóptero.
Não sei qual a relação entre o número de habitantes e o de celulares. Acredito que seja de empate. Em média, um celular por habitante. Como o automóvel, o celular marca a vida contemporânea. Não adianta ficar bravo. Ambos vieram para ficar. Em qualquer cidade é provável que a parcela maior da população disponha de carro e de celular. Mais de um até. Para os veículos é um suplício garantir vaga de estacionamento ou garagem de prédio. Para os celulares, ao contrário, nenhuma restrição. Estão aí, de todos os modelos, tipos, cores e preços. Dotados ainda dos mais impensáveis recursos, que os transformam no mais avançado Bombril das famosas mil e uma utilidades. Celulares podem hoje ser usados até como telefones.Continue lendo ›