O dorso do urso
De Marcos Lauer Amaral Camargo:
Nosso personagem chama-se Artemus Calvo e está diante do espelho presenteado pela prima Cecília. Passa a mão esquerda no cabelo rebelde da têmpora esquerda e ajeita a gola amassada do paletó de brim pendurado havia anos em um cabide do armário de madeira nobre. Prepara-se para uma tarde na biblioteca pública. O livro confiscado de forma aleatória para servir de fiel escudeiro no trajeto que será feito a pé, é uma espécie de manual moderno de filosofia assinado por Habermas.
As recomendações para os cuidados com a saúde habitam sua mente na travessia que deverá ser feita em 45 minutos, mas logo cedem espaço para pensamentos mais apurados, algo como a teoria da possibilidade (e probabilidade). Já a caminho ouve o canto de pássaros rituais do céu azul cheio de flocos da neve medianeira. Artemus não tem nenhuma pretensão antropológica, não conhece o Equador e nem os aborígenes australianos. Lamenta sim – e com razão – da diminuta cultura nos assuntos de renomada reputação, como a de encarar o processo civilizatório e os antagonismos irreconciliáveis.
O silêncio toma conta da biblioteca pública onde duas funcionárias vestidas de vermelho espanam o pó dos livros mais altos e poucos lidos pelos usuários. Ninguém poderia supor, por exemplo, que um segredo revelado pudesse atenuar qualquer tipo de dor. Quando, por um momento, mesmo que pequeno, verificava em seus sonhos o que a vida lhe tirara, não deixava transparecer dor ou agonia. Estoicamente desafiava o perigo de ser descoberto mesmo que serodiamente na trama bem engendrada. Mas, sobreviveu o bastante para o encanto da claque.
“O escritor é um ser humano especial”, diria o curador da biblioteca maior. Não teme os desígnios da sorte nem os agouros da espreita; também não pretende reduzir tudo a uma equação de primeiro grau. Tantas dificuldades não surgem apenas de gratificações de um deus desesperado em salvar sua ovelha desgarrada. O esforço empenhado deixaria Gregório estupefato. Foi assim desde a infância púbere et ducere. A obsessão em Artemus não era um defeito, mas com o decorrer dos anos percebeu que, com um pouco de resina e resignação, seria possível resolver a questão sem os traumas antes imaginados.
A falta de perspectivas (estas sim) se apresentava como uma tormenta de inúmeros graus na sua escala musical. Como evitar, então, uma vida medíocre, perguntaria tal qual Adorno. Não terminar o que começara era uma característica mais astrológica que eventual. A incógnita e a velha fração o transferiam ao estudo da matemática como num passe de mágica. Daí o despertar para o realismo fantástico. Pertencer ou não pertencer, sinal de intersecção. Mesmo vivendo em um conjunto vazio, nunca pensou em abandonar a grande farsa.
Ninguém afirma, mas a rima pobre pode ser tão deselegante quanto uma ofensa. E isso está bastante claro no poema do beócio que abriu um negócio, mas só deixou o ócio quando entrou na Grécia. Do domínio à imagem e logo volta ao raciocínio impregnado de sinais. Necessariamente uma equação não precisa ter resultado zero. Tinha ciência de que nem sempre os embates seriam realizados dentro da fenomenologia.
A voracidade daqueles que se aquinhoavam no poder público sempre foi notória e o notário registrava tudo, daí a importância dos cartórios. É claro que, diante do sistema de linguagem usual, as cores ganham maior nitidez e fornecem uma infinidade de opções. Ao descobrir imagens irregulares, não pode mais fugir de um futurismo condicionado, tampouco não prever as dificuldades de um rompimento com os ditames da época. Tampouco, insurgir contra os dogmas vigentes lhe traria algum benefício. Melhor seria se debruçar na concupiscência dos saltos ornamentais e supor que, entre a loucura e a sobriedade, estariam dispostas as idiossincrasias mais raras. “Por mim nenhum cardume tem o peso e o volume da forma que pretendo, pois eu mesmo condeno quando coordeno meu prato. Prefiro agora palmitos pra não terminar em fenos”.
Em um estudo intitulado “Partos em Porcas”, datado de 1991, Artemus já havia considerado que a atração física levaria os seres vivos (não somente os humanos) à reprodução; e que esta máxima também seria utilizada pelos porcos. Sem a reprodução anexada ao desejo sexual, seria fácil separar os condôminos pagadores dos inadimplentes. Como a responsabilidade recai sobre todos, e de forma indubitável, força-se a uma conotação de igualdade somente na hora do pagamento, tornando as pessoas iguais diante do fisco e das obrigações comunitárias.
O país, naquele momento, revelava uma tendência cada vez maior ao consumismo sem remorso. Não é difícil entender uma nação que parecia buscar o tempo perdido com a verborréia dos palanques em detrimento da leitura e principalmente da manutenção das bibliotecas públicas. A recusa, no entanto, de engendrar um modelo menos condicionado à ordem pecuniária era preocupante. Discussões de temas imperativos foram preteridas diante de um cartesianismo provinciano. O método adotado se assemelhava a um propósito imediatista que conduzia a população a agir feito um novo rico.
A burla à lei e à ordem tornou-se fato tão notório que o notário registrava sem dificuldades. E os boletins de ocorrências, fartos em todas as delegacias de polícia, formavam pilhas sobre as mesas dos delegados, ao mesmo tempo em que a memória do cárcere parecia sucumbir sob uma pretensa reconciliação entre estado e literatura. Nunca antes, na história desse país, via-se tamanha atenção às coisas materiais, algo que em nada lembrava o intelectual orgânico e as vindimas italianas.
O caráter emocional das decisões anunciadas pelo poder central comprometia a natureza das realizações e as esperanças de um conceito natural e fisiológico. Na idade da razão francesa não havia susceptibilidades a ponto de gerar um conflito que colocasse em dúvida a liberdade de expressão. Naturalmente que os adeptos do modelo viam na presença exótica e bem desenhada do autor, espectros de sensibilidade, indispensáveis à publicação de manifestos, de origem mais ou menos afamada.
Uma das melhores explicações sobre a correspondência biunívoca está no conto “Amêndoa, Jujuba e Delicado”, publicado em 1980. Lá Artemus traça um desenho bastante complexo do momento em que o transporte é feito de um conceito para outro. É possível em alguns casos visualizar as moléculas da transferência. Importante notar que, verdades proferidas ao longo do tempo foram suplantadas sem o menor esforço, da mesma forma como foram elaboradas algumas teses da Alemanha do pós-guerra. Enquanto tabus foram quebrados, outros suportes seriam desconsiderados. Nenhuma das alternativas teria sido validada, considerando o self ainda escondido na psicologia do terror.
Na metade dos anos 70, os filhos do regime militar rompiam com o sistema público ao dar continuidade ao movimento libertário anunciado no final dos anos 60. Essa geração perdida no espaço caiu numa espécie de túnel do tempo e passou a viver numa terra de gigantes. Colheu frutos prematuros e respondeu pelos delitos de um crime que, mais tarde, não mais seria tido como tal. Era a evolução dos costumes e as leis se adequavam a eles. Já o revisionismo ficou no mesmo lugar.
A frase da ativista referindo-se ao período de repressão de que “só não foi bom para quem morreu”, deixa claro o romantismo (e amadorismo) com que a intentona foi engendrada pelos insurgentes. Tudo muito simbólico e ingênuo. Um esboço do materialismo histórico conduzido pelo poeta Marx, ainda que se exigisse a senha da conta bancária para poder acessá-lo.
Artemus passa então a combater a obesidade literária. Em o “Acúmulo das Mulas”, conto escrito em 1973, a felicidade musical mostra suas compensações. O mais imbricado é que todo esse progresso oriundo da migração, notadamente a partir da década de 50, está alicerçado na construção civil, na propriedade e no número de veículos emplacados nos últimos meses. Todo esforço para valorizar a cidade contradiz com a falta de uma cultura que acompanhe esses novos residentes. As lacunas preenchidas na cidade só mencionam vácuos materiais. É de se lamentar a perda deste ou daquele quinhão cultural. O futuro, nesse aspecto, era duvidoso. Que tolo e feio ornato, diria Montaigne, agora sem nenhuma espécie de adorno.
No dia de finados, Artemus lê Parnac. Menos pelo significado da morte, mais pela simbologia das velas. Tempo ruim previa a meteorologia. Exercitando o cérebro, lembra-se do dia em que visitou uma floricultura para investigar o desaparecimento dos cravos das prateleiras de madeira comum estendidas em um lugar bastante arejado. Todo este organograma de raízes aquáticas é necessário para que se entenda o propósito das ações de Artemus e sua busca incansável pelo ensaio intitulado a posteriori “o dorso do urso”.
Artemus recupera a fé roubada pela investigação científica. Nem por isso faz oposição ao pensamento de Saramago. E fica feliz em ter novamente o ombro amigo e aconchegante de um deus construído para os momentos de angústia para em seguida acordar pleno e esperançoso de não ter de viver tudo isso de novo.
Para ele as coisas do homem são também as coisas de deus. E isso é o suficiente para melhorar todo cenário. Se as luzes da ribalta podem iluminar os passos do artista, a luz divina pode elevar todo seu status quo, permitindo a excelência das idéias e o fruir das palavras. Então por que não atribuir ao totemismo sua eficácia em distinguir ouropéis do já surrado estilo niilista?
Artemus se diverte no emaranhado filosófico criado por ele mesmo com a ajuda – é claro – de todos os pensadores lidos. Considerando os rompantes da juventude, a razão sartreana não deixaria dúvidas de que um velho calção de banho vestiria melhor que o pensado pelo estilista. Enquanto isso, a indústria têxtil cresce de forma acelerada na cidade moderna, uma alusão ao capital já transformado. Artemus pensa então em comprar uma nova fatiota. Já não tem como não admitir os traços contemporâneos nas têmporas e a articulação de um novo enredo. Sorte de quem viu a rubrica no canto da página. A velocidade com que as coisas acontecem deve ser respeitada e mantida. Do contrário, teremos um quadro fictício, com pouca fidelidade à ação das personagens.
São cinco e quinze da tarde. Artemus está em sua quadrofenia. Ajeita a gola do paletó de brim havia anos pendurado no cabide do armário de madeira nobre, pega a chave número 51 do guarda-volumes da biblioteca pública, retira o manual de filosofia moderna e segue em direção à porta. Ninguém demonstra preocupação ou alívio. O trajeto de volta ainda não pensado concede a Artemus mais uma chance de refazer sua imagem. Desculpe senhor, interfere a bibliotecária: este livro não pertence à biblioteca?
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(*) Marcos Lauer Amaral Camargo é jornalista – Maringá/PR