A zona proibida de Maringá

Histórias e personagens marcaram trajetória da antiga zona de prostituição de Maringá, que funcionou na Vila Marumby entre as décadas de 50 e 70

Foto Hilário, zona
O escritor José Hilário volta à praça da Vila Marumby: recordações da antiga zona de Maringá

Texto Donizete Oliveira
Fotos Ivana Martins e Carlos Ronchin
donijornalismo@gmail.com

Nas décadas de 50 e 60, muitos libaneses vieram para o Brasil em busca de oportunidades que não encontravam no velho mundo. Propagava-se que aqui era a terra do novo mundo. A Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, colonizadora da região, fez propaganda em alguns países europeus sobre o eldorado que se abria no Norte e Noroeste do Paraná.
Alta, cabelos negros, lábios carnudos, charmosa e fino trato. Assim era Fátima, libanesa de Beirute. Com sua conversa atraente ganhava a simpatia de seus interlocutores. Atraída pela nova terra, embarcou num navio grego rumo ao Brasil.
Depois de muitos dias mar afora chegou ao Porto de Santos, litoral de São Paulo. Logo se deu conta de que precisava trabalhar. O dinheiro que trouxera estava acabando.
Sua beleza chamava atenção dos trabalhadores do porto. Fátima começou a fazer programas sexuais nas docas de Santos. Não ganhava muito, mas dava para sobreviver. Acompanhada de um libanês, que conhecera litoral paulista, foi para São Paulo.

Zona proibida
Há muitas zonas espalhadas por Maringá. Zonas dois, cinco, sete, entre outras, que se referem à divisão da cidade. Mas na Vila Marumby havia uma espécie de zona proibida. As chamadas pessoas de bem se desviavam de lá. Era lugar de má fama, conhecida por zona do baixo meretrício.
No começo da década de 50, Maringá ganhava formato de cidade. Abriam-se ruas e avenidas. Surgiam as casinhas de madeira. Em cada porta um limpador de pé, apelidado de “chora paulista”. Quando não havia barro, era poeira. A energia elétrica era precária. Aos sábados, o pequeno povoado ficava abarrotado de gente que vinha da zona rural fazer compra.
Havia casa de tecidos, barbeiro, armazém de secos e molhados, mas faltava um lugar para lazer. Entre os trabalhadores que chegavam à nova cidade, a maioria era peão solteiro. Se houvesse uma zona de baixo meretrício, não faltariam clientes.
Surgiu, então, no Maringá Velho a primeira zona de prostituição de Maringá. Mas logo o conglomerado de casinhas e bares se mudou para a Avenida Guaíra, entre as avenidas Paraná e 19 de Dezembro.

Mudança
Com o crescimento da cidade, a zona começou a incomodar. Vereadores encabeçaram um movimento para transferir transferi-la de lugar. A Vila Marumby, na época, fora da cidade, foi escolhida. Para se chegar lá era preciso seguir por uma estradinha tomada pelo mato, entre o cemitério e a Avenida Cerro Azul.
O escritor José Hilário, 68, era assíduo frequentador da zona de Maringá. Não só em busca de aventuras sexuais, mas pelos amigos que tinha no local. Sua experiência será contada no livro “A casa da luz vermelha”, que será lançado assim que tiver condições financeiras, como ele mesmo diz.
A reportagem de Tradição encontrou Hilário no Bar do Nereu, em frente ao prédio onde mora, próximo da UEM (Universidade Estadual de Maringá). Autor de 10 livros e profundo conhecedor da história da cidade, ele fala do assunto com paixão. Às vezes, se altera com uma ou outra pergunta, mas logo volta à fleuma.

Passagem de trem
Em São Paulo, a vida de Fátima não foi menos difícil. Seguiu se prostituindo pelas ruas da capital. Até que adoeceu. Sem forças para continuar ganhando a vida com o corpo, internou-se no Hospital das Clínicas. Depois de vários dias acamada, recebeu alta. Como não tinha família, o hospital não a liberou.
Naquela época, os hospitais de São Paulo seguiam uma política: se a pessoa internada fosse sozinha, davam-lhe uma passagem de trem para seguir em frente. Geralmente, elas vinham para o Paraná. O Norte do Estado foi o destino de Fátima, que parou em Maringá.
Na cidade, não viu alternativa. Foi para a boate Flórida na Vila Marumby. Com sua fineza e charme, conquistou a simpatia dos clientes. Sua beleza singular despertava paixão. Até o vendedor de pipocas da zona se apaixonou por ela. Mas Fátima não desprezava ninguém. Se não se interessasse pelo pretendente, sabia esquivar-se sem gerar mágoas.

Boates
Hilário nasceu em Sertanópolis e chegou a Maringá em 1950 com oito anos de idade. Seu pai, “abridor de fazendas”, veio cuidar de uma propriedade em Mandaguaçu (a 10 quilômetros de Maringá). “Época difícil, mas muito boa”, recorda-se. “A gente amassava muito barro, comia muita poeira, mas não tinha essa violência de hoje”.
Na sua juventude, a zona era o único lazer que existia em Maringá. Hilário diz que começou a frequentá-la com amigos. Havia várias boates na Vila Marumby, o que a tornava quase um distrito. Flórida, Estrela Dalva, Tropical, Fugitivo, Africana e Boate da paraguaia Djcuy, eram algumas delas.
Segundo ele, a zona era vista com preconceito pela sociedade, mas pessoas de todas as classes sociais e religião a frequentavam. O escritor diz que por muitas vezes viu políticos lançar candidatura no local. Governadores que vinham a Maringá, obrigatoriamente passavam pela zona. “A sociedade é hipócrita, criticava de dia, mas à noite ia lá”.
Ele ressalta o respeito que havia entre os frequentadores da zona. Dentro das boates não havia briga, quem quisesse acertar as contas com alguém que fosse para fora. E mais: “Se você esquecesse sua carteira lá, no outro dia era devolvida intacta”.

Piano da igreja
Na década de 60, um famoso pianista de São Paulo veio dar um concerto num clube de Maringá. O evento foi bastante divulgado. Esperava-se casa cheia. Mas o piano dele por um erro da transportadora foi parar em Curitiba. Como o concerto não podia ser adiado emprestaram outro de uma igreja.
No dia do evento, um rapaz morreu afogado na piscina do clube. A promoção foi suspensa. Mas o público queria ver a apresentação do pianista. Acharam uma solução. Fazer o concerto numa das boates da zona. “Foi um sucesso”, lembra-se Hilário. “Toda a nata da sociedade foi pra lá, e o concerto durou até o raiar do dia”.
De acordo com ele, o piano da igreja existe até hoje e é possível que as marcas de copos de cervejas ainda permaneçam na madeira do instrumento.

Apanhou do jagunço
Outra história que Hilário recorda ocorreu no boteco de uma portuguesa. Era 1966. Copa do Mundo. Brasil e Portugal disputavam a classificação para avançar na competição. O Brasil perdeu. A tristeza dominou o ambiente. Todos ficaram cabisbaixos.
A portuguesa, no entanto, festejava com piadas sobre os brasileiros. Santão era um jagunço encarregado de expulsar pessoas consideradas intrusas pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná. Depois de alguns goles, ele se exaltou com a provocação e deu um soco no cara da portuguesa.
A confusão foi geral. Chamaram a polícia, mas antes que a viatura chegasse, o jagunço fugiu pelos fundos da casa. “Esta foi uma das poucas brigas que vi nos botecos da zona”, diz Hilário. “Nas boates, o pessoal não brigava”. Segundo ele, se houvesse confronto, alguém morreria porque naquele tempo, a polícia não perdoava.

Suicídio
Fátima fez fama na boate Flórida. Tornou-se conhecida dos fazendeiros da região. Muitos deles gastavam fortunas nas boates, que eram fechadas para eles. “O champanhe que essa gente bebia custa hoje R$ 50 mil a garrafa”, conta Hilário. “Vi isso acontecer por mais de uma vez, portanto não estou medindo”.
Aparentemente sem motivo, ela se suicidou. Pulou de ponta cabeça num poço. Naquele tempo não havia Corpo de Bombeiros.
Alguém precisava tirar o corpo do poço. Quem se encarregou da tarefa foi um taxista que trabalhava no ponto da zona da Vila Marumby. Tirou-a amarrada no sarilho. “Até hoje ninguém sabe o que a levou a dar cabo à própria vida”, lamenta Hilário.
Para ele, o fim das zonas de baixo meretrício foi ruim. Sem elas, as prostitutas se espalharam pelas cidades. “E naquele tempo, não havia a putaria que há hoje”, diz. “Aonde se viu um adolescente, com permissão dos pais, dormir com a namorada em casa? Isso não entra na minha cabeça”!
Banalizaram o sexo – acrescenta – a zona não faz mais sentido. Liberou geral. “Novelas e filmes exibidos pela TV em horário nobre deseducam e são mais pornográficos do que a antiga zona”.