Confissão
De Ary de Lima:
Senhor Deus,
Os meus olhos contemplam maravilhas esparsas na face da terra e encantos perdidos nos quatro cantos do céu. Tardes sangrentas e nostálgicas, e madrugadas cor de rosa, inspiradora de sonhos e de esperanças, eu avisto Senhor Deus, todos os dias, no cenário soberbo dos horizontes sem fim que as Tuas mãos desenharam no perfil da distância. As estrelas, Senhor Deus, que os Teus dedos semearam no coração da altura, eu as contemplo no céu como legião de mundos iluminados e esplendentes enfeitando a quietude das noites terrenas. E vejo o luar alvejando o pó de todos os caminhos. E os ribeiros cantando hinos de ternura. E as flores perfumando o silêncio. E as árvores dando sombras para os viandantes e frutos para os passarinhos dos Teus campos. Mas, Senhor Deus, há olhos, em redor de mim, que estão mortos para a vida! E não vêem estrelas no céu! E nem flores na terra! E nem descobrem as noites de plenilúnio! E nem avistam, nos horizontes, as fogueiras que as madrugadas e os crepúsculos acendem na roupagem transparente das nuvens! Dou-Te, portanto, Senhor Deus, muitas graças, porque me concedes o privilégio de contemplar a luz, oferecendo vida aos meus olhos, para que divisem maravilhas de entardeceres, e cintilações de estrelas, e deslumbramentos de alvoradas.
Senhor Deus,
Os meus ouvidos percebem as vozes da criação, do acanhado ruído das asas de um inseto ao impressionante rugido dos trovões que assustam o céu nas horas de procela. Eu posso ouvir, Senhor Deus, o cicio quase imperceptível das brisas que brincam nas folhas secas e o tropel dos ventos que galopam na imensidade, e vergastam as árvores e açoitam o rosto das águas, e destroem a vida, e sepultam cidades. Eu percebo, Senhor, em meus ouvidos, algazarra dos insetos, e os pipilos das aves,e as vozes dos animais,e o choro das criancinhas, e a lamentação dos velhos, e os gritos da mocidade, e o murmúrio imperturbável das multidões. Eu escuto, Senhor do Céu, badaladas de sinos, nos templos de fé, e gemidos de dor, nos leitos dos hospitais. Mas, Senhor Deus, há em redor de mim ouvidos que são mortos para a vida, e que não percebem a manifestação do Teu Poder, nas vozes das coisas que criastes! Senhor, eu te agradeço pela ventura de perceber a ressonância da Tua própria voz na eloqüência da Tua criação.
Senhor Deus,
Eu posso vencer grandes e pequenas caminhadas. E andar pelos Teus campos. E transpor as tuas montanhas. E vencer as distâncias que avisto nos limites do mundo. E cruzar todas as direções que as Tuas mãos traçaram. E vadear todos os rios. E alcançar,pela bênção de andar,todos os recantos e paragens que os meus olhos descobrirem. Entretanto, Senhor Deus, há criaturas ao redor de mim, que não movimentam as pernas. E vivem presas ao sofrimento!! E vivem amarradas a cadeirinhas de rodas! E nem cruzam as ruas! E nem vencem as caminhadas! E nem gozam o prazer de mudar passos, neste mundo! Dou-te graças, Senhor Deus, porque posso andar e correr a terra toda,que criaste com Tuas mãos.
Senhor Deus,
Eu canto e falo. Canto para aliviar a alma, e falo, Senhor, todas as palavras, compreendendo e sendo compreendido pelos que me cercam. A minha voz, Senhor, pode Te oferecer flores, e hinos, e orações, pois com a voz que tu me destes sou um pequeno gênio na comunhão da vida. Balbucio palavras de fé e de amor. E a minha voz pode chamar os que me cercam e os que me rodeiam, e os que me avistam, e os que me amam, e os que também adoro nesta vida. Pela voz que me deste, Senhor Deus, eu transformo em palavras tudo quanto sinto no coração, de bondade ou de maldade, de pecado ou de santidade, de amor ou de revolta. Mas há, Senhor Deus, em meu redor, criaturas que não podem falar! E nem rezar! E nem pedir, em oração que todos ouça, a felicidade para os seus semelhantes! E não podem ter cânticos de louvor para exaltar o Teu nome! E nem possuem, Senhor Deus, a ventura de se comunicarem! E de se entenderem! E de se ouvirem! Dou-Te graças, pois, Senhor Deus, pela voz com que pronuncio as minhas palavras. Porque posso enviar orações a Ti. E cantar hinos de louvor à Tua glória e ao Teu poder.
Senhor Deus,
Guardo a ventura de possuir mãos, que se levantam para Ti e para todos os homens que levantam para Ti e para todos os homens, para mostrar bênçãos emanadas de Tua bondade. Mãos que podem embalar criancinhas nos berços. Mãos que podem dobrar-se, em cruz, sobre o peito, nos instantes de oração e recolhimento. Mãos que depositam sementes no chão, para que a terra as devolva em flores de olhos aflitos. Mãos que abraçam corações amigos, e que se estendem para o próximo. Mãos que oferecem pão para matar a fome e água para aplacar a sede. Mãos, Senhor Deus, que podem guiar cegos na escuridão da vida, ou orientar perdidos nos labirintos do mundo. Mas, em meu redor, Senhor Deus, há corpos que não tem mãos! Que não podem segurar criancinhas! Que não depositam sementes na terra! Que não colhem braçadas de flores! Que, dentro deste mundo, não cruzam mãos sobre o peito em instantes de oração. Dou-Te graças, Senhor, e muitas graças, pelas mãos que me deste para ganhar o pão de cada dia!
Senhor Deus,
Ainda que com tantas bênçãos, reconheço o meu alheamento! Sei dos meus olhos que nunca te quiseram fitar! E dos meus ouvidos que nunca Te quiseram ouvir! E das minhas pernas que nunca Te quiseram procurar! E da minha voz que nunca Te chamou nas noites doloridas! E das minhas mãos que nunca se dobraram em cruz, nos momentos de súplicas e de oração.
Senhor Deus,
Iguais à minha, muitas vidas há, largadas neste mundo em completa indiferença. Cujas pernas nunca Te buscaram ! Cujos ouvidos nunca Te escutaram ! Cujos olhos nunca Te viram ! Cujas vozes nunca Te chamaram! Cujas mãos nunca Te acenaram!
Senhor Deus,
Totaliza a suntuosidade de Tua criação! Se as estrelas, Senhor, cintilam para clarear o Teu poder; se as flores nascem para perfumar os Teus altares; se as aves cantam para louvar o Teu nome, faze também Senhor, que os homens tenham olhos para Te ver, ouvidos para Te ouvir, pernas para Te buscar, mãos para Te enviar orações, e voz para cantar e louvar a Tua glória.
*Ary de Lima, meu pai, nasceu em São Sebastião do Paraiso MG,em 10/10/1914 e faleceu em Maringá em 22/4/1998, onde foi professor, vereador, radialista, jornalista, autor da letra do “Hino a Maringá” e “Hino dos Pioneiros de Maringá”, “Hino de Loanda”, “Hino de Sinop”, “Hino de São Sebastião do Paraiso”, dentre outros. Foi deputado federal. Não quis aposentar-se como deputado e a respeito dizia: “…se me aposentar como deputado ,vou ficar lembrando-me de meus colegas professores e de seus salários e então,vou colocar a cabeça no travesseiro e não vou conseguir dormir”. Papai aposentou-se como professor e morreu feliz e com dignidade. A propósito desta linda “Confissão” escrita por meu pai, relato aos leitores que não mais tenho uma de minhas pernas, a esquerda, que, por doença perniciosa – contraída por uma “bactéria hospitalar” – teve que ser amputada! Dou graças a Deus por apenas ter perdido uma parte de mim. Dou graças e louvo a Deus e bendigo todos aqueles que oraram e rezaram por minha recuperação. A prece nos aproxima de Deus e opera milagres em nossas vidas.