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Oxalá seja a cultura de todos

De Mario Donadon Leal, no Facebook:
Penso, no fundo, em trazer Montaigne, dos idos de 1580, para o mês de julho de 2013; assim, penso em provocar um encontro entre: os nossos debates sobre o Sistema Nacional de Cultura, pós-frustração da 3ª Conferência Intermunicipal de Cultura; e o trecho de Montaigne. Agora que sabemos que poderá haver nova Conferência, podemos pensar na possibilidade de espantar alguns espíritos assustadores da nossa cultura municipal. Depois de finalizada essa luta pela qual nós agora passamos, poderemos concluir que o prêmio esperado pela comunidade cultural maringaense (composta não apenas de produtores culturais afinados) deverá ser a participação efetiva na formulação do plano e na participação do fundo municipal de cultura. Isto, que chamo de prêmio, deverá ter o sabor de uma recompensa pelo trabalho sócio-cultural prestado à coisa pública (res publica); ou seja, tal recompensa não pode ser destinada às ações alheias à nossa realidade cultural.
Neste sentido, é imprescindível a reivindicação de tempo suficiente para discutirmos, de novo a partir do zero, as propostas culturais pelas quais nossos delegados continuarão lutando na Conferência Estadual. Caso contrário, estaremos cometendo o mesmo erro de antes, ou seja, estaremos escolhendo buscar tal recompensa baseados unicamente na aprovação alheia ao nosso estado cultural.
Partir da aprovação de propostas que não as nossas, ou alheias, é, sem dúvida, uma “base demasiado incerta e mal definida”, porque tal aprovação seria realizada por outros em nosso lugar. Em nossa época, também, “não sabemos em quem confiar para julgar o mérito das coisas”, sempre corremos o risco de sermos manipulados, manobrados, e, deve ser por isso, que a “massa” dedica ao ‘bom julgador’, o “homem de bem”, uma “estima injuriosa”.
O povo não se reconhece na maioria das decisões desse ‘bom julgador’ cultural, pois sabe que este último, quase sempre, entende a cultura como um estereótipo da “geórgica do espírito”, a qual diz respeito à formação individual da pessoa humana; e, ainda este julgador, não faz questão de buscar os meios de popularizar a Cultura, esta, agora, entendida no segundo significado do termo: Cultura como o conjunto dos modos de subjetivação, dos modos de vida, de pensamento, de construção, de expressão etc, cultivados pelas civilizações até os dias atuais. Estes dois fatores, em conjunto, fazem com que o povo sinta-se, a um só tempo, discriminado, pelos que usam a cultura como um cultivo pessoal; e excluído daquele grupo que tem privilégios sobre a outra Cultura, aquela que envolve, tão-somente, as manifestações produzidas em comum, entre todos os comuns.
E se perguntássemos a qualquer pessoa comum (seja no Terreiro da Mãe Lurdes – Troféu Consciência Negra 2007  -, ou nas comunidades de sambistas de esquecidas Escolas de Samba, entre os membros dos ignorados grupos indígenas, ou mesmo entre mambembes, artistas marginais, artesãos de feira ou volantes, entre os cantadores de bar ou de festas folclóricas): qual dessas duas culturas prevalece em nosso cotidiano? A resposta seria, com certeza: o “cultivo pessoal” é muito mais visível na lapela da elite cultural cristalizada no poder.
No entanto, estes “costumes de hoje”, como diria Sêneca, costumes regidos por regras da livre iniciativa liberal, resultam, não raramente, em conflitos totalmente alheios à Cultura, confrontos encobertos, para não se revelar o verdadeiro motivo da briga: a partilha. Uma pessoa mais frágil, que freqüente um confronto com estas características, deve tomar cuidado de abandonar o nauseabundo ambiente antes da golfada derradeira.
É verdade que em todos os setores organizados, e não apenas no cultural, grande parte da sociedade fica à margem dos debates sobre política urbana ou não. Por isso, podemos concluir que a não-interlocução dos produtores de cultura popular com os formuladores de planos e leis culturais tem a ver: mais com o costume da deificação do “cultivo pessoal” como cartão de crédito para o acesso à Cultura real; do que teria a ver com uma suposta fuga dos artistas populares ao compromisso de participar dessa importante decisão política.
São poucos os bons julgadores dispostos a reconhecer que, mesmo na regulação cultural, “cabe geralmente às casses médias e altas” definir as “regras permitidas e proibidas”, incluindo aquelas que afetam a população mais pobre. Esta análise é realizada pela equipe coordenada por Raquel Rolnik, do Instituto Pólis, no “Estatuto da Cidade – Guia para implementação pelos municípios e cidadãos” [“EC”, Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicação, 2001].
Claro que, em outros aspectos, tal análise não nos diz respeito direto; mas pensemos um pouco mais apenas nesse aspecto: “os planos e normas (…) são normalmente desconhecidos pela maioria dos cidadãos”; e, com efeito, “esta relação dos cidadãos evidentemente favorece quem, por força do ofício ou negócio, conhece a lei”. Além disso, essa relação “alimenta também as máquinas clientelistas – quanto menor o poder de interferência nas definições da lei, maior é a vulnerabilidade aos esquemas de favor” [EC., p. 193].
Obviamente, o nosso ideal seria que todos pudessem conhecer a lei e, assim, desfrutar de seu favorecimento tanto quanto os demais; mas a realidade não comporta esse ideal, pelo menos não ainda. Podemos sonhar com isso? Sim, em breve, quiçá, poderemos construir uma utopia possível, desde que tenhamos, nesta terça-feira, um Conselho deliberativo para a implementação de uma nova conferência; desde que a nova conferência não seja formulada e coordenada da mesma forma equivocada que presenciamos na conferência passada; desde que o próprio Conselho, que se reunirá terça-feira, não seja subjugada pelas determinações do poder municipal: “a independência do Conselho perante os órgãos governamentais é fundamental para a garantia do exercício de suas atribuições” [EC., p. 209].
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(*) Mario Donadon Leal é artista visual e escritor
(*) Imagem retirada daqui.

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