Sobre cuspir no prato em que se come e ser leal e ético

Por Aparecida de Fatima Peres:

Aparecida de Fatima PeresBasta surgir em meio ao confortável corporativismo das instituições públicas uma voz solicitando apuração de possíveis irregularidades (grife-se o adjetivo possíveis) para surgirem outras tantas vozes acusando o “inconformado” de antiético por cuspir no prato em que come, já que tal instituição paga o salário do ingrato.
Três questões, no mínimo, estão imbricadas na estreiteza de visão dos reacionários corporativistas: (1) desconhecimento de que o erário público é quem paga o salário do funcionário público e não a instituição a que ele serve, pois ela é mantida pelo Estado; (2) desconhecimento dos deveres do funcionário público diante de possíveis irregularidades que podem macular a instituição a que está vinculado; (3) desconhecimento de que existe uma diferença gritante entre o funcionário público ser leal à instituição a que serve e ele estar de acordo com o que ocorre nela, independentemente de as ocorrências serem regularidades ou possíveis irregularidades. 
Nos três casos, uma leitura atenta de documentos que tratam dos deveres do funcionário público quanto ao zelo pelas instituições onde trabalha lançaria lume em interpretações equivocadas quanto às atitudes do desagradecido que cospe no prato em que come. Cite-se como exemplo o Estatuto Ser leal à instituição é zelar por ela, ainda que isso custe dissabores opinião dos Funcionários Públicos do Estado do Paraná, Lei n.º 6.174, de 16 de novembro de 1970. No caso da questão (1), o Artigo 2.º da referida Lei define como funcionário “a pessoa legalmente investida em cargo público, que percebe dos cofres estaduais vencimentos ou remunerações pelos serviços prestados” (grifos da autora). Portanto o salário do ingrato cuspidor não sai da instituição a que serve, mas dos cofres do Estado.
Além disso, esquece-se o acusador de que o próprio funcionário público ajuda a pagar seu salário, pois integra o corpo de contribuintes. Logo ele é duplamente responsável por ser leal à sua instituição, não apenas porque ela é o prato em que ele come, mas, sobretudo, porque ele é também provedor e dono do prato – já que o que é público é de todos e não de ninguém como muitos julgam.
Ante o exposto, pergunta-se: Deveria o funcionário público calar-se diante de possíveis irregularidades porque recebe um salário? Se ele fizer isso, não seria sua honra de pouca valia? Valeria a pena o contribuinte pagar por alguém que não zela por uma instituição mantida por seus impostos? Mais uma vez cabe aqui citar a Lei n.º 6.174 de 1970, que, no Inciso VIII do Artigo 279, prescreve o seguinte quanto aos deveres do funcionário público: “levar ao conhecimento de autoridades superiores irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ou função”. No caso das questões (2) e (3), vale a pena lembrar o Inciso V do Artigo 279 da Lei n.º 6.174 de 1970, o qual afirma ser dever do funcionário público ter “lealdade e respeito às instituições constitucionais e administrativas a que servir”.
Ser leal e respeitar a instituição a que serve não significa, em hipótese alguma, calar-se diante de possíveis erros. Isso não é ser leal; isso é ser cúmplice, é ser ímprobo, é ser omisso, é ser negligente. Ser leal e respeitar a instituição a que serve é estar ao lado dela, a despeito de qualquer situação, é zelar pela imagem dela, ainda que isso custe dissabores em algumas circunstâncias – como ser acusado de cuspir no prato em que come ou de ser antiético com a instância que lhe paga o salário…
Poderia perguntar o leitor: “Mas de que, afinal, se está falando?” A que esta funcionária pública responde: Todo discurso é dialógico. Portanto para quem sabe ler pingo é letra, e a carapuça só serve para quem a veste. (Foto Kimberli Pauline Berwig)
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(*) Professora associada do Departamento de Língua Portuguesa da UEM e membro do Conselho Universitário.