Lula na Paulista: nenhuma palavra sobre corrupção
Por Marlene Novaes:
O Lula que discursou na Paulista era um fantasma.
Era a voz do líder sindical que morreu quando compôs alianças políticas com a direita, adotou um programa econômico liberal, aliou-se aos grandes empreiteiros, instrumentalizou o BNDES para atender aos interesses da burguesia, cedeu ao jogo da corrupção e às elites, forjou um país com estatísticas de vitrine sobre a fome e a pobreza, e assim vai.
No palanque, disparou contra os que vestem verde amarelo. Nas palavras dele, pessoas que pensam ter sangue verde e amarelo, ser mais brasileiras que os petistas e compram em Miami, por isso querem dólar baixo. Do outro lado, fez figurar nós, os que compram roupa fiada na 25 de março.
Proferiu um discurso centrado na militância petista que entoava “Lula ladrão roubou meu coração”. Bradou que o povo quer três refeições/dia, tal como faz a multidão verde-amarela. A audiência delirou. Esqueceram que, sob o PT, o Brasil saiu do mapa da fome mundial graças à cosmética estatística, mera mudança na metodologia de cálculo que fez cair os 7% dos que sofrem a fome para 1,7%. Porque a prática é diferente do discurso, entendeu-se que não três, mas uma refeição/dia fora de casa (em restaurante popular ou merenda escolar) basta para tirar alguém da fome. O governo PT alardeia que 36 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza absoluta. Mas, quem deixará de sofrer pela pobreza porque recebe um benefício social de R$ 77,00 no mês?
Aqueles em condições de fornecer uma visão compreensiva da sociedade brasileira estão vitimados pela tendenciosidade. Jessé de Souza, em entrevista à Gazeta do Povo, em 11/03/2016 faz a leitura do movimento de massas que ocupou as ruas pedindo fim da corrupção e fora Dilma-Lula, usando a mesma forma que assa o bolo que Lula ofereceu à massa na Paulista. O sociólogo, tal qual fez Lula, caracterizou milhões de brasileiros como elite que deseja desmanchar as políticas sociais dirigidas à diminuição da desigualdade social. Sobressai aí um contrário aos interesses democráticos. O exercício da prática democrática pede respeito aos movimentos sociais com refinada análise sobre suas reivindicações. Jamais desqualificação. É espúria toda análise que identifica a massa que saiu às ruas, no dia 13, como de tipo único. A plurivocalidade estava ali representada. Não se olha o mundo numa xícara. Não se toma, senão por leviandade analítica, 5 milhões de manifestantes como requerentes ou defensoras da desigualdade social. Um sociólogo não está autorizado a efetuar análises parciais.
Quando o povo vai às ruas pelo fim da corrupção, expressa o irrevogável direito de cobrar do governante o retorno da confiança depositada na forma de voto. O interesse pelo respeito aos princípios do direito administrativo e pelas condutas probas, éticas e morais não é exclusivo da multidão verde-amarelo. No entanto, a corrupção ausentou-se da fala de Lula. Nenhuma palavra sobre a corrupção. Estranha ocorrência para apontar no partido que mais defendeu o combate à corrupção, nela reconhecendo o mal que destrói a riqueza nacional. O discurso, lido por muitos como conciliador, cuidou de apontar para uma imensidão contrária aos avanços sociais, tal como diz Jessé de Souza, estas “classes médias que se rendem ao discurso moralizador sem perceber que estão sendo usadas pelo capital”, para reprisar as palavras do sociólogo. Até aí não vai muita diferença. Os fiéis eleitores de Lula não estão plenamente satisfeitos com os acordos firmados com o capital, mas assentem a ele.
Jessé de Souza toma a classe média como a escumalha intelectual que mira para burguesia no sonho de imitação, torcendo o nariz para os avanços sociais. Palavras dele: “Ao bater as panelas da moralidade os médios alimentam a ilusão de que estão mais próximos das elites, com as quais estabelecem um misto de admiração e ressentimento. É uma relação sadomasoquista.” O sociólogo e presidente do Ipea não nota a contradição que impõe à sua própria análise.
Quando a classe média reage à imoralidade, batendo suas panelas, rompem com a categoria espaço e, ampliam a categoria de entendimento. Ao bater panela pela moralidade, do alto dos seus apartamentos, a classe média rompe o espaço para ir ter, não com as elites que não tem motivos para se gastar batendo panelas, mas com os desassistidos, com excluídos, com os que passam fome e foram subtraídos dos mapas e das estatísticas. O barulho das panelas quer sufocar a voz das elites que subiram ao poder carregadas no colo pelo PT. Uma nova categoria de entendimento contrária à retórica do nunca antes este país esteve tão bem passa a ter lugar. Os médios, para usar a expressão de Jessé de Souza, olham para a realidade e não para estatísticas que registram sucesso pleno na diminuição da desigualdade social. Infelizmente, estamos longe de ser o país que o PT vende como criado por ele. O sadismo fica por conta do PT que, conforme indicam denúncias e fatos já apurados, sangrou os cofres públicos no maior escândalo de corrupção da história. O masoquismo fica, também, por conta dos petistas que optam por banalizar os erros na condução política, econômica, ética, moral, institucional que engolfam o PT e arrasta o povo para uma crise sem precedentes.
No discurso, Lula não tocou nesta palavra fina: corrupção. Ignorou-a completamente. Estaria em questão o retorno à lógica malufista do rouba, mas faz? No segundo mandato de Lula e no primeiro de Dilma foram assentadas menos famílias em áreas destinadas à reforma agrária que no governo FHC. Somente o Lula do primeiro mandato o superou. O Bolsa Família ganhou força no governo FHC. Rouba, mas faz quanto? Tais dados, evidentemente, não servem para isentar o PSDB das inúmeras críticas que lhe pesam, com particular destaque para as privatizações que desnacionalizaram setores inteiros da economia e, também, para a corrupção. Vale tão só para convencer que o discurso petista não compatibiliza com a sua prática. Sob certos aspectos conseguem ser pior que aqueles que tanto criticam.
O impeachment de Dilma tem aspectos positivos e negativos. É positivo ver o povo na rua, a favor ou contra ele. Sai fortalecida a prática democrática. O povo exercita seu poder, reforçando a consciência sobre a importância dos seus usos nas ocasiões necessárias. Negativo é que, no caminho para a construção do impeachment, violências graves foram desferidas contra as instituições que precisam ser salvaguardadas. De outra parte, o impeachment não viabiliza a alternância do poder por um grupo isento de denúncias de corrupção. Sequer há legitimidade de parte do grupo político que o requer, quando composto por citados na delação de Delcídio eu já figurando como réus em processos. Estes aspectos negativos bastam para retirar a euforia em torno do impeachment.
Além da impopularidade, que nunca foi motivo para impeachment, pesa sobre Dilma a denúncia que milhões do esquema de propinas da Petrobras foram canalizados para sua campanha presidencial. O pedido de cassação da chapa Dilma-Temer continua correr, junto ao TSE, fundamentado no uso de poder político e econômico para favorecer resultados das eleições, ainda que importante lembrar que instrumentalizado pelo PSDB, já comprometido em denúncias da Lava Jato. À Dilma, como a todo cidadão, cabe o direito de ampla defesa. Não culpar previamente, mas tampouco inocentar previamente. Investigar, assegurar defesa e aplicar as letras da lei. Eis tudo o que deve ser feito. A urgência que se tem dado a este assunto compromete sua lisura. Minha defesa segue no sentido do aguardo da decisão do TSE que oportunizaria nova eleição.
De tudo o que tem ocorrido, lamento com grande pesar a demonização da classe média. Lembro que a ela pertence quem sua muito para viver, é gente com renda per capita entre R$ R$ 291 e R$1.019. Note-se, ainda, que as duas manifestações tiveram públicos bastante similares. Dia 13, dos que estiveram nas ruas, 12% eram empresários, no dia 18 eram 6%. No dia 18, 26% dos que estiveram na Paulista ganhavam de 5 a 10 salários mínimos, 24% mais de 10 a 20 salários mínimos, 11% mais de 20 a 50 salários mínimo e apenas 6% declarou ganhar até dois salários mínimos, segundo dados do Datafolha, divulgados em 14/03 e 20/03 na Folha de São Paulo. Ambos os protestos foram de pessoas com escolaridade acima da média nacional. A classe média não é a vilã da história. A elite política e os rentistas da dívida pública merecem bem mais ocupar o posto. Os rentistas da dívida pública não fizeram das ruas um mar de “coxinhas”, a eles abundam motivos para elogiar o governo PT. Além do que representam diminutos 0,04% das famílias do Brasil que, em 2015, se apropriaram de 47,4% do orçamento da União na forma de pagamento de juros, amortizações e refinanciamento da dívida pública, conforme dados da Auditoria Cidadã. Estranho não demonizar-se esta fração social, mas apenas a classe média. O mais triste foi o veto da Dilma à proposta de auditoria da dívida pública federal com a participação de entidades da sociedade civil. A graça é mesmo espinafrar a classe média.
Só existe possibilidade de contrapor a desordem selvática imposta pela corrupção com luta firme contra ela. Nenhum corrupto no poder, eis a única opção que favorece o desenho da identidade nacional. Do contrário, abrimos terreno para a manutenção da praga da corrupção que, hoje, além de roubar duas refeições daqueles que passam fome, freia o progresso social. Salvo conduto para a multiplicação dos propinodutos e outras formas de corrupção generalizada pipocariam por toda a sociedade como consequência inevitável da falta de rigor punitivo para o primeiro escalão em seus desvios éticos, financeiros e de finalidade. Por isso não cabe banalizar a corrupção ou ignorá-la nos discursos e nas práticas democráticas.
A defesa intransigente do PT a Lula e Dilma, sem que se conclua o rigor das investigações carrega o simbolismo da corrupção como vencedora, aos olhos dos que gritam contra ela nas ruas. Admitem os defensores de Dilma e Lula que as acusações enfeixadas contra ambos representam meros ataques à democracia e tentativa de golpe, quando bem caberia exigir as averiguações cabíveis antes de praticar defesa cega. Governistas e anti-governistas vivem o afogadilho como problema comum, os primeiros antecipam defesas e os segundos a condenação. Vai tempo para resolver o imbróglio.
Cabe conferir rigor às investigações a fim de que, comprovados os desvios, puna-se exemplarmente. Do contrário o povo perde para a corrupção como quem se dobra ao inevitável reconhecimento de que todos são corruptos e nada se há de fazer. Chamo atenção para o fato que está em jogo disputas políticas, mas também, algo muito maior: a construção da identidade brasileira apartada de diacríticos estigmatizadores que referem o país como o grande galinheiro, a republiqueta das bananas, a terra de ninguém e o paraíso dos corruptos.
Classificar 5 milhões de pessoas que foram reagir contra a corrupção como meras indignadas e contrárias aos avanços sociais representa inaceitável delinquência intelectual. Corrupção nos quadros do governo corrompe a identidade dos governados. Quantos forem os corruptos quantos devem ser retirados do poder pela força dos movimentos sociais, doa a partido que doer. Na luta contra a corrupção está implicada a identidade nacional.
Diante deste impasse, transita Proposta Emenda à Constituição (PEC), de autoria de Chico Alencar (PSol-RJ) e Randolfo Rodrigues (Rede-AP), na Câmara dos Deputados e no Senado, respectivamente. Ambas visam a estabelecer condições para a realização do chamado referendo revogatório, conhecido como recall e praticado em países como Alemanha, alguns estados dos EUA, Suíça e Venezuela. O referendo transfere para o povo o poder de decisão sobre a permanência ou não do governo. O debate em torno do recall deve ser ampliado. A crise que vivemos pede por alternativas democráticas que não sacrifiquem nossa carta magna. As PECs, por sua vez, são instrumentos legítimos de aprimoramento da nossa prática democrática. Ao assumir o poder da decisão, subtraindo-o de grupos que tem feito do impeachment forma de subir ao poder, o povo exerce sua soberania e pode reafirmar a tese de que o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Contudo, se trata de instrumento moroso e que não permitiria conferir agilidade na resolução da crise atual. A finalização do julgamento do TSE para a cassação da chapa Dilma-Temer, prevista para julho, não está de todo livre das questões políticas e judiciais que venham atrasar os trabalhos.
A saída democrática para esta crise de popularidade e confiança pela qual passa o governo PT exige a mobilização e vigilância do povo em favor da luta contra corrupção. Se Lula não nos dá uma palavra sobre a corrupção, cabe a nós fazer dela palavra de ordem para gritar nas ruas: Fora corrupção!
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(*) Marlene Novaes é antropóloga, doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), com concentração no doutorado em Saúde Coletiva pelo Departamento de Medicina Preventiva Social, da Universidade Estadual de Campinas (DMPS-Unicamp). Atualmente é docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (DCS-UEM).
(**) Ilustração s/ foto de Ricardo Stuckert/Instituto Lula