Aparelhar é dominar

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Levantamento inédito esmiúça a distribuição de cargos federais com altos salários. Conclusão: Temer apadrinha tanto quanto Dilma, mas agrada a mais partidos. Por Sérgio Praça*

No fim de junho, os brasileiros testemunharam pela primeira vez na história do país um presidente da República ser acusado formalmente de crime de corrupção passiva no exercício do mandato. Logo em seguida, viram como sai caro blindar um político desse porte.

Não ficou por menos de 15 bilhões de reais a fatura que o Congresso cobrou para arquivar a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer. O pagamento veio na forma de liberação de emendas parlamentares e da edição de ao menos uma medida provisória de interesse da bancada rural — o resultado foi 263 a 227 votos em favor do trancamento do processo. Agora, às vésperas da segunda denúncia endereçada ao chefe da nação a ser oferecida pela PGR — provavelmente por tentativa de obstrução da Justiça —, os brasileiros aprendem mais uma: se poupar um presidente de um processo criminal sai caro, livrá-lo de um segundo exige mover montanhas, e não só de dinheiro.
Para tentar conter a rebelião de aliados no Congresso diante da nova acusação da PGR, o governo já começou a desalojar de seus bem remunerados cargos de confiança os apadrinhados de potenciais deputados “traidores”. Apesar do enfraquecimento prévio da denúncia de Janot devido às confusões na delação da JBS, dezenas de postos do gênero estão mudando de titular de forma a punir os parlamentares favoráveis à denúncia e premiar os que se comprometem a rejeitá-la quando chegar à Câmara.
Cargos chamados DAS (Direção e Assessoramento Superior), para os quais não há necessidade de concurso, sempre foram vistos como preciosa moeda de troca com os partidos aliados, de modo a garantir a execução dos interesses do governo, instrumentos do chamado aparelhamento. O filé-mignon do organograma está nos níveis de 4 a 6, com salários entre 15 946 e 19 663 reais (nada mau para posições que não requerem nem mesmo diploma universitário). Levantamento inédito que elaborei para VEJA comparou a lista de ocupantes dessas cobiçadas vagas com a relação de filiados a partidos. Um especial em abr.ai/monitor-veja detalha a metodologia e as conclusões do cruzamento, feito com dados de junho de 2015, quando Dilma Rousseff completava um semestre em seu segundo mandato, e junho de 2017, logo após o primeiro aniversário da era Temer.
O resultado é um retrato claro sobre o toma lá dá cá nos dois governos. Com Dilma, 17,5% das quase 5 000 colocações no topo da hierarquia eram preenchidos por filiados de partidos diversos. Temer, ao assumir, eliminou 1 216 postos, mas o porcentual de nomes ligados a legendas permaneceu quase intocado, 18%. O peemedebista, porém, foi mais hábil que sua antecessora em agradar à base. Enquanto sob a gestão Dilma 44% dos filiados eram membros do PT, o PMDB, hoje na principal cadeira do Palácio do Planalto, restringiu-se a 20,7% do total — o dobro de antes, mas com bom espaço para alegrar os parceiros. Petistas foram aos poucos varridos e atualmente se restringem a 11% dos cargos de confiança mais bem remunerados, ou um quarto de antes. O PSDB quase dobrou de tamanho, de 5,8% para 10,5%. O nanico Solidariedade passou de 0,3% a 4%. E por aí vai. Temer, portanto, fez quase tudo igual à antecessora, mas deixou margem maior para a barganha com os partidos, o que se traduz em sustentação firme nos tempos em que sopram ventos de impeachment.
É claro que a lista de apadrinhados pela base vai muito além dos que integram alguma agremiação, como também não se pode dizer que todos os membros das siglas carecem de competência para exercer os ofícios para os quais foram designados. Mas a rápida dança das cadeiras — cai o PT, sobe o PMDB — não deixa dúvida sobre o imperativo do fisiologismo nas decisões sobre contratação. Não é necessariamente ruim que haja agilidade para preenchimento de postos nos ministérios. Assim, o presidente da República e os comandantes de cada pasta podem, em tese, buscar um técnico adequado à sua estratégia de combate ao desmatamento no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e um profundo conhecedor de alfabetização no Ministério da Educação. Ou então, em vez de seguirem esse caminho, jogar pelos ares tais chances de agir com seriedade e fazer dessas posições meras boquinhas.
Estudo feito pelos cientistas políticos Carlos Pereira (FGV-RJ), Timothy Power (Universidade de Oxford) e Eric Raile (Universidade Montana) mostra que, em regimes multipartidários, a partilha dos ministérios estabelece uma “base contratual” no jogo de interesses, enquanto emendas orçamentárias individuais “cobrem os custos da negociação do dia a dia”. O uso dos cargos carrega vantagens extras. A primeira: pactos de longevidade. A segunda: não é preciso ficar ao sabor do caixa do mês. Basta expulsar os inimigos e abrir a porta aos camaradas.

Temer, é claro, sabe bem disso. Tome-se novamente a primeira denúncia apresentada pela PGR contra ele, quando a máquina de trocas foi ativada para blindar o presidente no Congresso. A denúncia nem bem havia sido analisada pela Câmara, e o governo já reagia aos políticos que, imaginava, seriam seus detratores. Na manhã da votação, em 3 de agosto, o Diário Oficial da União trazia a exoneração do superintendente do Ibama na Paraíba, o tucano Thiago Serrano. Ele havia sido indicado seis meses antes pelo deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), que àquela altura já declarara publicamente o voto contra o governo. Entrou no seu lugar Bartolomeu Franciscano do Amaral Filho, com histórico de participação no PV e no PMDB. Parlamentares alardearam que ele foi apadrinhado pelo deputado André Amaral (PMDB-PB), voto a favor do arquivamento. A troca mostrou-se a primeira de uma série — e as peças do dominó continuam caindo até hoje.
A prática é tão escancarada que o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, não se furtou a fazer menções explícitas a ela em palestra na Caixa Econômica Federal, em fevereiro. Ele relatou diante dos presentes ter dito ao PP que o Ministério da Saúde era “deles”, mas que gostaria de ter um titular respeitado na área — alguém “notável”. A sigla respondeu apresentando o nome do então deputado Ricardo Barros, que não possui experiência no assunto e teve campanha financiada pelo dono de um plano de saúde. Quando Padilha, porém, ouviu a garantia de que o partido votaria sempre em bloco com o governo, o negócio foi fechado. “O Ricardo será o notável”, afirmou, segundo ele próprio. Um áudio da palestra vazou e o ministro virou alvo de investigação na Comissão de Ética da Presidência. O órgão concluiu que Padilha não cometeu infração. Recomendou-lhe apenas evitar pronunciamentos que deem margem à interpretação de que cargos públicos são usados em negociatas. Imaginem se alguém pensa um absurdo desses.
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* Sérgio Praça, autor do levantamento, é colunista do site de VEJA e professor da FGV-RJ. Com pesquisa de Wesley Seidel e Marcelo Soares e reportagem de Eduardo Gonçalves. Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2017, edição nº 2547