Análise: para ser coerente, a bancada evangélica precisa abandonar a defesa do Antigo Testamento

Por Stéfano Salles, no site da revista Época:

Cerca de 90 deputados e senadores compõem a Frente Parlamentar Evangélica, um número que pode alcançar um terço do Congresso Nacional já na próxima legislatura, de acordo com as projeções mais otimistas de seus integrantes.

Esse grupo monitora o avanço de pautas comportamentais, como direito reprodutivo das mulheres, direitos civis da população LGBTQ+ e a inclusão de discussões de gênero na Educação, além de votar em bloco contra as propostas que pretendem adequar a legislação brasileira às necessidades da contemporaneidade. Embora haja mais de 1.500 igrejas evangélicas de diferentes inclinações no país, a bancada se comporta de modo homogêneo. Ignora as diferenças que, fora no Parlamento, são suficientes para gerar divisões e novas congregações, para vaticinar convicções mais radicais do que as defendidas no cotidiano das instituições que pretendem representar.
A narrativa de pânico moral que eles alimentam dialoga com o eleitorado de um país de maioria cristã porque está amparada pela Bíblia , em obras como Deuteronômio e Levítico. Os dois livros são responsáveis pelas passagens mais ameaçadoras sobre o comportamento humano, que parecem retiradas no Código de Hamurabi. Elas revelam a face de um Deus justiceiro e carrasco, que enxerga pecado em qualquer hesitação. Em comum, além da tragédia, a localização: ambos integram o Antigo Testamento, uma obra de profundo valor histórico e afetivo para os cristãos, mas de pouca relevância doutrinária.
O Novo Testamento derroga as práticas vigentes antes da chegada de Cristo e prevalece sobre o Antigo. A obra revela uma face mais tolerante de Deus, marcada pelo perdão e pela misericórdia. Portanto, causa perplexidade que reivindiquem a condição de cristãos aqueles que se apegam exageradamente aos textos anteriores à chegada do Cristo. É como se não atribuíssem qualquer valor a seu sacrifício na cruz.
O discurso radical dessa bancada, que, no Legislativo, já apresentou projeto até mesmo para proibir o aborto decorrente de estupro, passa pela criação de narrativas apocalíticas sobre temas corriqueiros do dia a dia, como a transformação do conceito de família ao longo dos séculos. E o reconhecimento das uniões da população LGBTQ+ sequer seria a primeira onda de transformações do núcleo familiar, já modificado por conta dos direitos à adoção e ao divórcio. Atualmente, as varas de família do Judiciário deliberam sobre temas que vão além de suas atribuições primárias, como guarda compartilhada de animais de estimação e paternidade socioafetiva. Adaptações impostas para adequação ao espírito do tempo. No entanto muitos parlamentares, pagos com dinheiro público, veem-se no direito de sufocar uma já oprimida parcela da sociedade por conta de uma fé que ela sequer professa.
A face de Deus apresentada pelo Novo Testamento oferece ao fiel uma liberdade maior, com a qual muitos líderes religiosos não sabem lidar com sabedoria. Com dificuldades para convencer seus rebanhos a seguirem suas orientações, pretendem utilizar a lei para proibir que todos façam diferente do que pregam. Sem controle, os discursos contundentes produzem unidade ao reunir forças contra adversários comuns, ainda que imaginários. No caso dos elos criados dentro dos templos, ainda há ainda um agravante. A ascendência espiritual do líder religioso sobre o fiel fragiliza o senso de fiscalização do poder público, essencial para a democracia representativa. Os títulos de bispo, pastor, presbítero ou diácono funcionam como foro privilegiado celeste, que desobriga seus portadores de prestar contas ao eleitorado. A combinação entre a Teologia da Prosperidade e a lógica da conversão, proposta pela Teologia do Domínio, transforma os contestadores em adversários instrumentalizados pelo diabo. Uma visão de mundo incompatível com os fundamentos da administração pública.
O conservadorismo da bancada é uma estratégia de visibilidade eleitoral. A verborragia beligerante projeta os parlamentares para as comunidades que os elegeram, reforçando sua legitimidade, independentemente do descompasso entre a prática e a doutrina. Essa unidade garante voto e mandatos para a defesa de interesses mais mundanos, como descreve a jornalista Andrea Dip, em seu livro “Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder”, lançado esse ano. Estão entre eles: renovações de concessões de rádio e televisão, esforços para a manutenção de isenção fiscal de igrejas e templos religiosos e títulos de utilidade pública para recebimento de verba estatal, listados por ela. No entanto, também integram o pacote: prestação de serviços aos governos, concentrados em áreas como assistência social, prevenção ao uso de drogas e recuperação de dependentes químicos, além de emendas parlamentares ao Orçamento da União direcionadas a instituições dirigidas por irmãos de credo, até o limite de R$ 15 milhões por ano.
Tantos interesses e a falta de exigências legais de contrapartida impedem a oxigenação das instituições, dirigidas com frequência por líderes autoritários, que desencorajam a transparência e a fiscalização. “Quem é que toca em ungido do Senhor e fica impune? Ungido do Senhor é problema do Senhor. Ungido do Senhor não é problema teu. O teu pastor é ladrão? O teu pastor é pilantra? Você não está gostando? Então, sai de lá e vai para outra igreja. Não se mete nisso não, que não é da sua conta, não. Cai fora, vai embora”, já bradou o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, para desestimular a ação de qualquer movimento fiscalizatório em seu rebanho.
Embora celebre ter ajudado a fazer do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) o terceiro mais votado do estado em 2014, Malafaia dirige uma congregação pequena diante do número de fiéis e do poder econômico da Universal e das demais Assembleias de Deus, onde o processo se repete com outras lideranças. Os representantes da primeira estão no PRB, enquanto os da segunda estão mais distribuídos, mas costumam dar preferência ao PSC.
Para os integrantes da bancada evangélica, a escolha do partido tem mais relevância que para os demais parlamentares. Mas não se trata de consistência ideológica. Nas legendas tradicionais, os representantes das igrejas precisam trilhar um longo caminho de crescimento dentro da hierarquia partidária, onde costumam ser recebidos com desconfiança ou reduzidos ao papel de puxadores de voto. A falta de prestígio reduz a capacidade de articulação política e os enfraquece em suas bases e os relega a segundo plano na elaboração de nominatas para disputas proporcionais, além de afastá-los dos cargos do Executivo. Assim, a construção de um caminho partidário próprio nada mais é que pouco percebido atalho para o sucesso político
Como muitos conceitos do Antigo Testamento, a defesa dos valores morais daquela época caducaram. Mas, por cálculo eleitoral e pela unidade política que as pautas comportamentais proporcionam, ainda que contra grupos socialmente vulneráveis, é antinatural que a bancada ou os partidos reformem seus pontos de vista. Resta ao eleitor assumir seu papel fiscalizatório, cobrando que os agentes públicos atuem respeitando a todos. Orai e vigiai, como ensina Cristo no Evangelho de Mateus.
(Foto: Roberto Stuckert Filho)

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