Sociedade sem escola durante a pandemia

Prof. Dra. Ivana Veraldo:

Nesse momento, milhões de crianças, adolescentes e jovens estão sem frequentar as instituições de ensino, da educação básica ao ensino superior. A pandemia do novo coronavírus, covid-19, e a estratégia do isolamento social como meio de enfrentamento da doença levaram à suspensão das aulas para evitar ou diminuir a curva de contágio.

No Brasil, uma Medida provisória desobrigou as instituições de ensino a cumprirem o mínimo de 200 dias letivos exigidos por lei, desde que mantidas as 800 horas mínimas de aula.

Situação atípica: uma sociedade sem escolas! O Desafio é imenso e, certamente não basta manter os alunos em contato com o saber curricular. É imprescindível que se garanta o direito universal à educação de qualidade e se preserve a autonomia das instituições de ensino, princípios contidos na LDB.

Alguns Estados e municípios rapidamente apresentaram propostas para manter os alunos aprendendo, mesmo que isolados em casa, mas não há unicidade nas estratégias adotadas. Além disso, as autoridades não consultaram os pesquisadores das universidades públicas nem as entidades que representam os profissionais da educação. Predomina o improviso e a precariedade. As consequências podem ser nefastas para professores e alunos.

A principal solução apresentada (já efetivadas em algumas regiões) tem sido a da educação à distância (EAD) via internet (nos celulares e nas redes sociais), via TV aberta ou pelo rádio. Materiais digitalizados, videoaulas e listas de exercícios são disponibilizados aos estudantes por esses meios.
O uso da educação à distância como estratégia educacional no período do isolamento esbarra em vários problemas, tais como:

a) os recursos tecnológicos não são acessíveis de forma equânime para todos os municípios, escolas, professores e alunos. Muitos não têm acesso à computadores nem internet. Os computadores e celulares acessíveis em geral são desatualizados;
b) as secretarias de educação, estaduais ou municipais, não tem plataformas nem metodologias estabelecidas para oferecer aulas à distância. A interface das aulas e atividades que já estão sendo ofertadas não tem qualidade mínima em decorrência da falta de instrumentos adequados e de laboratórios digitais. As escolas privadas são mais equipadas. Isso resultará num aumento das desigualdades entre a rede pública e a privada;
c) as aulas na TV aberta não alcançam todo o território;
d) os profissionais da educação não possuem experiência ou formação adequada para o uso da educação à distância, apesar de comprovada competência no modelo presencial;
e) os alunos e seus familiares compõem uma parcela vulnerável da sociedade sem condições econômicas e culturais para acompanhar o aprendizado dos filhos. Não tem familiaridade com o uso de plataformas digitais de aprendizado e possivelmente não possuem capital simbólico e repertório educativo variado;
f) muitos pais ou responsáveis continuam trabalhando, mesmo com o isolamento, e estão sem tempo, exaustos e estressados para acompanhar as atividades a serem cumpridas pelos filhos;
g) os estudantes nem sempre tem autonomia de estudo exigida para o uso da EAD, principalmente as crianças mais novas;
h) as propostas de EAD durante o isolamento não atingem todas as modalidades de ensino. A Educação especial, a Educação de Jovens e Adultos (EJA), a Educação do campo e dos quilombolas não foram contempladas.

No caso do Paraná, há agravantes. O aplicativo que vem sendo usado expõe dados privados dos estudantes e não tem sistema de controle para as conversas no chat, desconsiderando o limite de faixa etária. Denúncias estão sendo feitas pela APP Sindicato sobre a inserção de links com pornografia, pedofilia, prostituição e suicídio coletivo. As ocorrências ferem vários dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e da Constituição Federal.
E mais, o governo do Paraná colocou os professores do quadro efetivo em “licença compulsória” e fez um chamado emergencial para compor um grupo de trabalho de 100 professores para gravar as videoaulas e produzir material didático-pedagógico para realizar o trabalho de cerca de 80.000 professores. Os professores do Quadro Próprio do Magistério poderão participar, mas o chamado também inclui os professores contratados em Regime Especial que estejam com contrato aberto, os temporários. Para tanto a Secretaria de Educação (SEED) pagará R$ 70,00 (setenta reais) por cada produção.

Todos os aspectos citados geram ineficiência. O estresse dos professores e alunos vai aumentar não há como assegurar que os estudantes não sejam excluídos da aprendizagem por fatores econômicos e culturais. A solução da educação à distância, como meio de manter os alunos ativos cognitivamente, parece-nos uma solução improvisada, que pode acarretar graves consequências, por não garantir a qualidade do processo de ensino-aprendizagem e por não ser universal.

Como a situação é atípica, sugiro cautela. As escolas públicas já vivenciaram períodos longos sem atividades durante a ocorrência de legítimas greves e conseguiram se reorganizar. É fundamental evitar a precarização, tanto do ensino quanto da aprendizagem.

No atual contexto de crise de saúde pública não há porque focar unicamente nos aspectos quantitativos. Não há necessidade nem a obrigatoriedade de cumprir o calendário escolar. E, quanto ao currículo, os educadores poderão e saberão posteriormente privilegiar os conteúdos mais importantes de cada matéria para ensinar no segundo semestre.
Ou seja, proponho flexibilidade. E, nesse sentido, empresto da professora Aline Lunardelli, coordenadora do curso de pedagogia da UEM, o conceito por ela apresentado numa postagem nas redes sociais de “Paz Cognitiva” para professores, alunos e seus responsáveis nesse período de isolamento.
Ela propõe que abandonemos a ideia de reposição de conteúdo. Pensa ser infrutífero encher os alunos com listas e listas de exercícios e tarefas de matérias que não se conectam. O estresse pode aumentar e colar em vários outros sentimentos como medo, raiva, dúvidas e angústia. Lunardelli propõe “paz cognitiva” com crianças ativas sim, mas priorizando a saúde mental. Sugere que no isolamento as família ensinem saberes complementares ao currículo escolar. Como as diferentes noções de tempo e de formas de comunicação, a produção da subsistência, os cuidados com a casa, com o corpo e a saúde mental, a observação da natureza; que haja diálogo sobre os sentimentos, que se exercite o olhar social para os vulneráveis e que ensinemos sobre solidariedade, tolerância, humanidade e coletividade. A professora afirma: “é tempo de acolher, de sentir, de dar e receber, de pensar, planejar, ouvir, sentar, ter medo, ter esperança, brincar e encontrar alternativas para sobreviver!!!!!”.

Certamente o mundo mudou e nunca mais será o mesmo. Todos, em alguma medida, vão desenvolver depressão, ansiedade, pânico, fobia, estresse, mau humor, irritabilidade, insônia, estresse pós-traumático, raiva, exaustão emocional, improdutividade.

Professores e alunos podem aproveitar a oportunidade para repensar as características básicas da sociedade na qual vivemos; aprender novas formas de comunicação e de sobrevivência, novas formas de interpretar, de viver e de lidar com tudo o que acontece. Como sugere Lunardelli, podemos (re)construir saberes para garantirmos nossa sobrevivência. Vamos aproveitar a oportunidade para não reproduzir relações sociais utilitaristas, imediatistas, superficiais, meritocráticas e baseadas somente na racionalidade. Deixemos de lado as formalidades e vamos lutar para garantir a saúde física e mental de todos.

Proponho aos gestores educacionais que sejam mais flexíveis. Os educadores, depois de terminado o isolamento, poderão identificar e selecionar quais conteúdos e habilidades são mais essenciais e trabalha-los no segundo semestre.

Por último quero fazer uma advertência. O isolamento e a estratégia da educação à distância acaba por atribuir um protagonismo maior às famílias na tarefa educacional e os defensores dos movimentos “Escola sem partido” e “Educação domiciliar” tem um terreno fértil para verem suas bandeiras se fortalecer. Esse risco deve ser combatido pois esses movimentos caminham na contramão da democracia e da escola pública de qualidade para todos. Escola e família sempre tiveram relações conflituosas. Não é agora, durante a pandemia, q esse problema será resolvido. Mas é preciso lembrar de uma diferença fundamental entre essas duas instituições. A família educa de forma intuitiva e espontânea e reproduz seus valores. A escola educa com base na ciência, no planejamento, com metodologias já testadas e visa transformar a sociedade para que todos tenham seus direitos sociais atendidos.

Os movimentos “Escola sem partido” e “Educação domiciliar” não acumularam evidências científicas a seu favor. Seus argumentos são equivocados e frágeis. O problema é que podem se aproveitar desse contexto atípico para angariar adeptos. Estejamos atentos. A pandemia trouxe uma nova normalidade, porém não mudou a base da sociedade capitalista: excludente, desigual, antidemocrática e opressora.

A Unesco alerta que as estratégias educacionais adotadas nesse período de isolamento podem gerar riscos para a aprendizagem, a sociabilidade e a segurança das crianças. As medidas podem aprofundar as desigualdades na educação. A pobreza, que já é um dos fatores que mais contribuem para o fracasso no ensino, vai aumentar. Em um contexto sem escola, são os mais vulneráveis que têm menos oportunidade de aprendizagem em casa.

No Brasil já temos dificuldades para assegurar o aprendizado com qualidade para todos na modalidade presencial. As estratégias adotadas pelas autoridades para o campo da educação enquanto durar o isolamento podem aprofundar mais ainda as já abissais desigualdades sociais.
Educadores, nossa sociedade está provisoriamente sem escolas. Entretanto, essa crise vai passar e, mesmo que ocorram mudanças importantes na sociedade, ainda podemos e devemos contar com a Educação Púbica para a construção de um mundo melhor. Vamos resistir.

(Marcos Santos/USP Imagens)

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