Os efluentes e os mocambos

Durante o período da gripe espanhola em Pernambuco, houve a autorização dada pelo Presidente do Estado de Pernambuco à época Manoel Antônio Pereira Borba, hoje cargo de governador, para que as usinas de açúcar despejassem as caldas aos rios, e o argumento foi a grave situação econômica, provocada pela gripe, o que impedia o adequado tratamento do efluente.
Desde fazia décadas, era notória a degradação ambiental provocada pelo lançamento das caldas, ao ponto que os rios nas bacias hidrográficas canavieiras em Pernambuco, se encontravam gravemente poluídos.
Veja-se que em 1913, chegou a discutir-se abertamente, na assembleia legislativa, a obtenção de uma receita, de caráter extraordinário, vinda das multas que seriam pagas, pelas usinas de cana, por causa destas “deitarem caldas aos rios”.
Essa receita destinava-se, exclusivamente, ao saneamento dos municípios em que estiveram localizadas as fábricas. Tanto era o volume de lançamento que a lei orçamentária de Pernambuco, para o exercício de 1º de julho de 1913 a 30 de junho de 1914, de fato, previu no artigo 24 essa receita extraordinária.
Mas, o poder político exercido na direção da coisa pública, direta e indiretamente pelos senhores de engenhos, manteve o lançamento das caldas longe das multas e da receita extraordinária.
Gilberto Freyre, na obra Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil, publicado em 1937, escreveu que “o monocultor rico do Nordeste fez da água dos rios um mictório. Um mictório das caldas fedorentas de suas usinas. E as caldas fedorentas matam os peixes “…” ao ponto que as casas já não dão a frente para a água dos rios: dão-lhe as costas com nojo. Dão-lhe o traseiro com desdém”
Na época da gripe de 1918, o diretor de Hygiene dr. José Octávio de Freitas, afirmava que o lançamento das caldas “acarretava mais uma calamidade a ferir fundo as populações do interior.”
O trabalho de Octávio de Freitas, um higienista, era de longa data, sendo que em 1917, manifestou no Congresso dos Prefeitos, a íntima relação das doenças com o meio ambiente, afirmando que o derrame das caldas das usinas no leito dos rios, matava os peixes e impedia que suas águas se prestem a alimentação dos animais, e provocava a “mefitisação” das populações ribeirinhas, em grande parte pelo “espraiamento da famerosa peste branca” (Tuberculose)
Freitas tomou posse na diretoria de higiene de Pernambuco, atual Secretaria da Saúde do Estado, em 17 de outubro de 1918, em substituição ao dr. Abelardo Baltar, que havia falecido com 34 anos da gripe.
De imediato, determinou que fossem irrigadas as ruas com soluções antissépticas, por meio de carroças apropriadas, bem como requereu que fosse realizada a alcatroagem, técnica amplamente difundida na Europa, para aplicação de piche nas ruas e estradas sem calçamento, principalmente, as de maior transito.
Afirmando que a poeira, como era notório, constituía um dos agentes mais poderosos de propagação da epidemia. Assim, o meio mais eficiente, dados os recursos disponíveis, era justamente a alcatroagem, que iria impedir as nuvens de poeiras, seguindo as orientações técnicas da engenharia.
Destaque-se também, a notificação obrigatória dos casos de influenza; a proibição de acompanhamento de pessoas aos enterros; a requisição dos médicos da instrução pública estadual e municipal para auxiliarem os médicos da Diretoria de Hygiene, bem como o aviamento imediato, por parte de todas as farmácias da capital, das receitas formuladas pelos médicos dessa Diretoria.
Determinou ainda o fornecimento diário aos jornais do número exato e completo dos mortos vitimados pela influenza, para conhecimento da população.
Reconhecendo que era a “classe pobre” a mais dizimada, em grande parte pela quase absoluta falta de recursos financeiros, bem como pela precariedade da moradia.
Para tanto, os médicos da Diretoria fariam as visitas aos mocambos, orientando e examinado as condições de higiene, aconselhando, as medidas mais simples, e inclusive fornecendo os materiais necessários para enfrentar a doença.
Destaca ainda o dr. Freitas que a imprensa colaboraria, enormemente, divulgando os fatos, bem como advertindo ao povo que evitasse os “resfriamentos, as perturbações gástricas, deixasse de beber aguardente e evitasse as alimentações intempestivas”.
O nobre médico advertia que transgredir as recomendações para o enfrentamento da gripe espanhola era um crime de lesa humanidade e de lesa patriotismo.
Em 1922 o dr. Octávio Freitas recebeu uma bonificação, para fins de aposentadoria, de dois anos de serviço, em razão do trabalho à frente da Diretoria de Higiene durante a gripe espanhola.
(*) Professor da UEM, em Maringá
(Fotografia. Mocambos. Coleção Josebias Bandeira. Fundação Joaquim Nabuco)
Faça parte do nosso grupo no Telegram e receba as principais notícias do dia – Clique aqui
Faça parte do nosso grupo no WhatsApp e receba as principais notícias do dia – Clique aqui
