Os suplícios de Amélia na pós-abolição

Numa tarde ensolarada, andando pelo Conjunto Santa Felicidade, de Maringá, conheci Amélia Maria de Jesus Silva. Uma negra simpática, que vivia sentada num banco de tora no quintal, sempre rodeada por netos e bisnetos. Ela tinha 104 anos.
Era prazeroso sentar ao lado dela e, com paciência, ouvi-la. A memória, às vezes, falhava, e ela tinha de ser ajudada pela filha, mas não a impedia de recordar sua dura vida naquele Brasil pós-abolição.
A libertação dos escravos, em 13 de maio de 1888, foi apenas um ato formal da princesa Isabel. Os negros se viram liberto, mas sem condições de tocar a vida. Muitos, que trabalhavam nas casas dos senhores, preferiram ficar e, na prática, continuaram escravos. Trabalhavam em troca de comida e não tinham liberdade. Muitos que nasceram nos anos seguintes tiveram o mesmo destino.
O caso de Amélia. Nascida em Salvador (BA), em 1911, ela e seus cincos irmãos foram doados bebês a ricos comerciantes, que os criaram. Embora não houvesse mais escravidão, ela servia aos patrões como se fosse escrava. Ainda adolescente, tinha de cozinhar, lavar roupa, passar e cuidar das crianças em troca da comida e não podia sair de casa. Se precisasse, em caso de muita precisão, só com ordem dos patrões.
Tocando os dedos na palma da mão, ela imitava a palmatória, castigo que a dona da casa, a quem chamava de madrinha, lhe aplicava se deixasse alguma quina nas roupas passadas. “A gente tinha de ter muito cuidado no serviço pra não apanhar depois”, contou. Assim foi por alguns vários anos, confinada na casa grande.
Os patrões a libertaram, mas a vida lá fora não foi menos cruel. Analfabeta, Amélia mudou-se para Presidente Prudente (SP), e conseguiu trabalho nas lavouras de café. “A gente ganhava o suficiente pra comer, e o trabalho era pesado, passava a semana na lida, no cafezal e, nos fins de semana, ajudava na torrefação dos grãos”, dizia, com um olhar estático, como se rememorasse as agruras do passado. Veio casamento, mas o suplício continuou. O marido a espancava.
Mãe de cinco filhos, 22 netos, 19 bisnetos e dois tataranetos, Amélia morava com a filha, Elizabete, e vivia sorrindo, parecia, enfim, liberta, a curtir a vida que lhe restava. Um presente para quem sofreu tanto, exemplo de que a libertação dos escravos não passou de mero simbolismo. “Amélia é que era mulher de verdade”, como dizem os versos de Ataulfo Alves e Mário Lago em “Ai que saudades da Amélia”.
(Texto e fotos: Donizete Oliveira – Jornalista desde 1986, mestre em Comunicação pela UEL. Contato: (44) 99963-2181)
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