Arqueóloga reescreve história da América

Em 2020, a arqueóloga brasileira Niéde Guidon vai comemorar um aniversário especial. Em meados do ano, ela completará 50 anos de trabalho ininterrupto na região do Parque Nacional da Serra da Capivara, idealizado por ela, em São Raimundo Nonato, no sertão do Piauí, local com maior concentração de arte rupestre do mundo.
Nascida em 12 de março de 1933, em Jaú (SP), cursou história natural na USP e se especializou em zoologia na mesma universidade. Em 1959, começou a trabalhar na seção de arqueologia do Museu Paulista. Doutorou-se em arqueologia pela Sorbonne (Paris), com especialização em pré-história. Na mesma instituição, concluiu o pós-doutorado. Em 1966 foi contratada como pesquisadora pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica.
A seguir, em entrevista por vídeo, ela revela que as datações da presença humana na região chegam a 100 mil anos.
O que a motivou a trabalhar na Serra da Capivara?
Quando soube das pinturas rupestres desta região fiquei muito interessada porque eram muito diferentes de tudo que se conhecia no mundo. Quando comecei a conhecê-las, em 1970, fiquei ainda mais empolgada pela sua riqueza, variedade, dinamismo e expressividade. Assim até hoje com uma equipe interdisciplinar estudamos este rico patrimônio.
Quantos sítios arqueológicos existem na Serra da Capivara, quantos são explorados e quais os mais importantes?
Até hoje foram catalogados mais de 1300 sítios na região, sendo 70% com pinturas e gravuras; os outros são aldeias, oficinas líticas e/ou acampamentos. Na Serra da capivara 172 sítios estão preparados para visitação, dos quais 16 acessíveis a pessoas com dificuldade de locomoção.
É difícil estabelecer categorias de importância se consideramos o lado espetacular podemos citar como exemplo os sítios: Toca do Boqueirão da Pedra Furada, Toca do Sítio do Meio, Toca da Ema do Sítio do Brás, Toca da Entrada do Pajaú, Toca do Paraguaio, Toca da Extrema, Toca do Pica pau, entre outros.
Mas do ponto de vista científico à riqueza dos sítios mencionados se somam muitos outros que deram importantes resultados como Toca dos Coqueiros, Toca do Vento, os sítios do Serrote e outros. A somatória de todas as informações recolhidas permite hoje retraçar, por enquanto parcialmente, a vida do homem pré-histórico na região.
Qual a idade do “homem americano” e qual caminho ele teria utilizado para chegar à América, de acordo com suas pesquisas?
Os resultados de 40 anos de pesquisa nos permitem afirmar que os primeiros homens chegaram à região por volta de 100 mil anos atrás. A teoria que nos permitimos defender é que teriam vindo trazidos pelas correntes marítimas da África. Quando o mar estava muito baixo e começava a desertificação de parte desse continente.
As populações começavam a ficar assoladas pela fome e saiam ao mar à procura de alimentos. Alguns teriam entrado pelo Rio São Francisco; outros pelo Rio Parnaíba até o Rio Piauí atingindo a nossa região atual.
Por que arqueólogos estadunidenses relutam em reconhecer essa idade do “homem americano”?
A teoria da passagem pelo Estreito de Bering data dos anos 50, e a característica principal da ciência é que novas descobertas vão mudando essas teorias. Cada vez menos arqueólogos americanos se opõem às nossas descobertas. Eles mesmos têm obtido datações muito antigas no México e no Sul do Chile, inclusive arqueólogos uruguaios obtiveram datações de 30 mil anos.
Esses resultados provam, até para os leigos, que seria impossível estar no Uruguai há 30 mil anos se a passagem por Bering mais antiga teria sido por volta de 20 mil anos.
Como está sua relação com o poder público no que se refere ao apoio para manutenção do Parque da Capivara?
Não se trata da minha relação pessoal com o poder público. Trata-se de um poder público que não assume seus compromissos. Como unidade de conservação, o Parque Nacional deve por lei ser preservado e mantido pelo Ministério do Meio Ambiente através do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.
Como bens culturais, os sítios arqueológicos devem por lei ser preservados e mantidos pelo Ministério da Cultura através do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Também quando em 1991, o Governo Brasileiro pediu à UNESCO a inscrição do Parque Nacional Serra da Capivara na lista de Patrimônio Mundial assumia implicitamente a proteção do patrimônio.
A senhora tem dito que a saída para a região seria a construção de um aeroporto?
As obras do aeroporto iniciadas em 1998 ainda não estão finalizadas, mas existe o compromisso do Governo do Estado do Piauí de concluí-lo. Estamos aguardando. À medida que as descobertas foram aumentando e vimos a importância da região do ponto de vista cultural percebemos que para proteger o patrimônio era necessário desenvolver as comunidades entorno.
Trata-se de uma região afastada dos grandes centros e extremamente pobre. Através dos anos, desenvolvemos diversos projetos, consultamos e tivemos o apoio de diversos órgãos nacionais e internacionais. Todos concluíram que o patrimônio cultural seria o motor para o desenvolvimento almejado.
Sendo uma região semiárida com chuvas irregulares e com um solo pouco apto à agricultura era impensável desenvolver através da indústria ou o agronegócio, mas o turismo seria a solução.
Daí a importância do aeroporto, visto que o mais próximo fica a 300 quilômetros, em Petrolina (PE), com parte da estrada em más condições.
Qual a importância das pesquisas arqueológicas na evolução humana?
Considero que a evolução do homem é gerada por diversos fatores, entre eles, o apoio nas experiências anteriores da própria pessoa, da sua comunidade e de seus antepassados através das gerações. A arqueologia permite conhecer a vida dos homens através dos vestígios materiais antes da escrita.
Infelizmente, nem sempre os seres humanos ouvem a experiência. Os homens pré-históricos e as tribos indígenas que ainda existem não destruíam a natureza, conheciam os limites da sua utilização e não tinham mais filhos do que podiam sustentar.
O que a região oferece de atrativos para os turistas, especialmente, o Museu do Homem Americano?
Primeiramente, destaco que o Museu do Homem Americano representa uma parte do retorno à comunidade do resultado de 40 anos de pesquisas interdisciplinares. O patrimônio da humanidade é realmente o Parque Nacional Serra da Capivara que foi inscrito na lista da Unesco pela riqueza de seus sítios arqueológicos.
No parque, os visitantes ficam surpresos pela riqueza dos sítios arqueológicos e suas pinturas rupestres, pelas extraordinárias paisagens e pela organização da visitação. No Museu, surpreendem-se com a museografia e a interatividade.
(Fotos: Divulgação)
Faça parte do nosso grupo no Telegram e receba as principais notícias do dia – Clique aqui
Faça parte do nosso grupo no WhatsApp e receba as principais notícias do dia – Clique aqui