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Neoliberalismo a serviço da desigualdade social

Lendo um artigo de opinião, intitulado “Estado tutela a desigualdade para manter o poder”, me deparei espantado com a seguinte sentença: “Países com estado que tutela a população tendem a manter a concentração de riqueza”.

Entre outras coisas, o texto sustenta que os subsídios governamentais para os mais ricos e as políticas de transferência de renda aos mais pobres no Brasil convergem para emperrar a produtividade nacional e assegurar a continuidade no poder do governo vigente. Porém, ao contrário do que reza a cartilha neoliberal da imprensa brasileira, os argumentos, expostos genericamente, me parecem uma grande falácia.

Como se infere da história recente do Brasil, a desigualdade social se agravou justamente no momento em que foram desmanteladas as políticas públicas de distribuição de renda, valorização do salário mínimo, assistência social, habitação e combate à fome. Ou seja, quando o Estado decidiu parar de tutelar os desfavorecidos. Segundo dados de 2019 do IBGE, a desigualdade no país voltou a subir a partir de 2016, nos governos Temer e Bolsonaro, paladinos assumidos do livre-mercado.

A ideologia burguesa do estado-mínimo, da desregulamentação comercial, da austeridade fiscal e da liberdade econômica garante que só ela é capaz de reduzir o abismo da desigualdade social no Brasil. Pouquíssimos governos, além do brasileiro, pensam assim. Até mesmo os EUA de Donald Trump voltaram a adotar medidas protecionistas na economia para proteger seu povo dos efeitos nocivos da competição no mercado global e do desemprego em massa.

Os índices mais recentes do coeficiente de Gini, que mensura a desigualdade de renda mundial, trazem alguns países no topo da tabela que não são exatamente conhecidos pelo tamanho mínimo do seu Estado, muito menos por sua baixa carga tributária: China, Rússia, Alemanha, França, Portugal, Espanha, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Uruguai etc. Coincidentemente ou não, estas nações possuem também um elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), sem mencionar a exuberância do Produto Interno Bruto (PIB) de algumas delas.

Ironicamente, a Era de Ouro do capitalismo no pós-2ª Guerra se caracterizou por planejamento econômico estatal, pleno emprego, seguridade social abrangente e investimento estatal pesado em industrialização, educação, ciência e tecnologia – inclusive nos EUA. Ironicamente, tudo isso teve inspiração no anticomunismo e no modelo soviético dos planos quinquenais e da rápida industrialização, que transformou uma União Soviética agrária e feudal em potência industrial, socialmente desenvolvida.

Também não foi com liberdade econômica e estado-mínimo que o mundo se ergueu das sucessivas crises do capitalismo desde 1929 até os dias atuais. Afinal, sempre jorra dinheiro do Estado para recuperar empresas e bancos falidos e alimentar os miseráveis. As máquinas das Casas da Moeda começam a trabalhar quando não há risco de hiperinflação.

Curiosamente, sob o manto do liberalismo, incontáveis crimes e abusos foram cometidos ao longo da história por potências como os Estados Unidos e Inglaterra: 1) espoliação de recursos naturais, minerais e financeiros das colônias de ontem, que são as mesmas de hoje (América Latina, Ásia e África); 2) genocídio de negros, índios, judeus, muçulmanos e opositores em geral; 3) patrocínio de ditaduras militares e governos amigos na periferia do mundo, para manter o fluxo de negócios internacionais e debelar uma eventual revolta dos espoliados; 4) escravidão e/ou superexploração do trabalho assalariado, com pouca ou nenhuma proteção trabalhista; 5) concentração criminosa de riquezas na mão de uma oligarquia empresarial, financeira e latifundiária, pouco ou nada produtiva.

Mas penso que há sim um problema de tutela do Estado brasileiro na manutenção da desigualdade social. Os ricos administram a pobreza tutelando o Estado. Em outras palavras, nosso Estado democrático de direito é tutelado pelos ricos e para os ricos – poderia ser chamado também de plutocracia. Um Estado que é cúmplice da sonegação fiscal dos ricos e implacável com a dos pobres. Um Estado que oferece empréstimos, benefícios, subsídios e isenções fiscais para os ricos e subemprego para os pobres. Um Estado que coloca Judiciário, Polícia e Exército para defender os ricos do assédio dos pobres. Um Estado que prende e mata o bandido pobre e liberta prontamente o bandido rico, sob fiança, suborno, influência, status etc.

Aos pobres no Brasil restam as longas filas do desemprego, do subemprego, da creche, do SUS, da Caixa, do INSS, do Bolsa Família. Mas se não houvesse toda essa geringonça do Estado, se a livre iniciativa, o livre-comércio e o empreendedorismo imperassem, nada disso seria necessário. Como os pobres são tutelados no Brasil, que nação paternalista!

A burguesia empresarial e latifundiária, livre dos grilhões do Estado, ajudaria a resolver tudo isso, dando de comer aos miseráveis em quantidade suficiente, abrindo mão de viagens e contas no exterior, festas, carros e casas de luxo. Mas tudo será resolvido quando o governo extinguir os direitos sociais e trabalhistas. Tudo será resolvido com empregos precários, informais e mal remunerados à maioria da população, sem proteção social, sem arrecadação de impostos para o Estado manter uma educação pública de qualidade, capaz de emancipar socialmente essa mesma população.

A liberdade econômica no Brasil dos anos 1990 levou nossos capitalistas industriais, produtivos, ao parasitismo da especulação financeira e a exigirem o desmonte do Estado para receberem em dia o dinheiro da dívida pública. Desindustrialização, extinção de direitos e políticas públicas, é assim que se combate a desigualdade social? Não são justamente a sonegação fiscal, a superexploração do trabalho, o rentismo e a ganância por lucro que possibilitam a escandalosa acumulação de riqueza nas mãos de poucos? Não se iludam, a luta entre pobres e ricos pela divisão da riqueza nacional e mundial, com seus respectivos aliados tíbios nas classes médias, será sempre uma luta de Davi contra Golias.

Sem a presença firme do Estado na retomada econômica e na garantia do bem-estar social haverá novos apagões no Brasil. Se até gente da ONU e do FMI tem recomendado investimento público no combate à crise global, aprofundada pela pandemia, é porque a coisa está feia. É porque a ideologia neoliberal voltou a ser uma piada de mau-gosto dos Chicago Boys e do Consenso de Washington.

As classes baixas e médias não conseguirão levantar sozinhas, sem apoio estatal, o Brasil da desigualdade histórica e estrutural. Brasil neocolonial, agroexportador, escravocrata, fazenda de estrangeiros e fonte de luxo para as elites. Passada a pandemia, será hora de pressionar governantes e parlamentares nas redes e nas ruas para fazerem seu trabalho, cumprirem seu papel, não permitir-lhes o crime da omissão. Um trabalho intenso em prol da produção sustentável, do pleno emprego e de uma renda digna para aqueles que realmente geram a riqueza e sustentam o Brasil e o mundo: os trabalhadores e trabalhadoras.


(*) Eduardo Siqueira: graduado em Letras e especialista em História pela UEM. Já trabalhou como servidor da Prefeitura de Maringá, conselheiro municipal de Assistência Social e dirigente sindical do Sismmar. Atualmente é membro da direção do PCdoB de Maringá e servidor da Câmara Municipal.

(Ilustração: Vitor Teixeira)

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