A cronologia do horror e a CPI da Covid
Luiz Carlos Mandetta, ex-ministro da Saúde, foi o primeiro a depor na CPI da Covid. E não foi por acaso. Quando ministro, realizava diariamente coletiva de imprensa para falar sobre o novo coronavírus, no Brasil e em outros países. Acompanhado de assessores qualificados, comunicava o número total de infectados e de óbitos, e as medidas adotadas no enfrentamento da crise sanitária, que já se prenunciava devastadora. E ia além.
Orientava sobre os cuidados pessoais indispensáveis para não contrair o vírus, diminuir sua circulação e evitar a saturação das unidades hospitalares. Atitudes simples, como a lavagem frequente das mãos e o distanciamento físico, e as mais complexas, como as de uma rígida quarentena para os mais vulneráveis – aqueles com mais de 60 anos, e os acometidos de alguma comorbidade – eram igualmente recomendadas. O uso de máscara ainda não era, à época, uma recomendação da Organização Mundial da Saúde -OMS.
Como médico, Mandetta sempre se caracterizou por ser um entusiasta defensor do fortalecimento e aprimoramento do Sistema Único de Saúde -SUS (considerado um dos melhores e mais abrangentes sistemas do mundo). No ministério, trabalhou de forma coordenada e harmônica com secretários estaduais e municipais de saúde, tanto para o fortalecimento do SUS quanto para o enfrentamento do novo e letal vírus que, a essa altura, assombrava o mundo. Em função disso, iniciou o fortalecimento do SUS em todos os estados e municípios. Leitos e UTIs hospitalares foram ampliados e medicamentos para intubação adquiridos, bem como respiradores e a indispensável provisão de oxigênio. Nessa época, o novo coronavírus era uma novidade e um desafio para médicos e cientistas.
Como não havia medicamento eficaz para combatê-lo, e tampouco vacinas para imunização, a perspectiva próxima era de uma tragédia sanitária com milhares de mortos. Os cenários traçados pelo ministério, nesse sentido, indicaram que em uma visão mais otimista, se adotadas duras medidas preventivas, oportuna e adequadamente, o país atingiria, em dezembro de 2020, a trágica marca de 40.000 mortes. Na visão mais pessimista, caso não houvesse uma ação integrada entre União, Estados e Municípios com o emprego adequado e extraordinário de recursos humanos e financeiros, o número de mortos chegaria a 180.000. (Mais tarde, viu-se que inexistiu o esperado trabalho integrado. Houve foi desunião, provocada por Bolsonaro. Assim, em 31 de dezembro de 2020, o país registrou 194.976 mortes). Desafortunadamente, Bolsonaro jamais atribuiu ao vírus qualquer periculosidade. Por isso mesmo, tratou com descaso o seu enfrentamento.
No dia 16 de abril de 2020, quando as mortes por covid chegaram a 1952, Mandetta foi demitido. Seu substituto, o médico Nelson Teich, ficou no cargo por apenas 28 dias. Nesse período, as mortes pelo coronavírus já eram de 12.884. Teich demitiu-se por não permitir que se incluísse no protocolo do ministério remédio ineficaz no tratamento da covid, a hidroxicloroquina, como exigia Bolsonaro. Assumiu o cargo Eduardo Pazuello, general da ativa, nele permanecendo até 24 de março de 2021, quando as mortes ultrapassavam o número de 300 mil. Foi uma gestão caracterizada pelo mais completo e rematado fracasso. Marcelo Queiroga, médico, é o quarto e atual ministro da Saúde, neste momento em que o país ultrapassa as 417 mil mortes.
Essa é a cronologia do horror. Podia ser diferente? Podia! Mandetta devia ter sido mantido no cargo, e com ele toda a equipe, uma vez que estavam completamente comprometidos no combate ao vírus. Ao invés de demitir o ministro, Bolsonaro devia é ter feito um pronunciamento à Nação, claro e incisivo, dando-lhe integral apoio. Como presidente, devia ter dado exemplos públicos de como se comportar em relação ao temível vírus: usar máscara em todos os eventos de que participasse (a OMS logo passou a aconselhar o seu uso); não promover aglomerações e não recomendar o tratamento precoce, com o uso da hidroxicloroquina e outros medicamentos sabidamente ineficazes.
Sendo o Brasil um país continental, a decretação de um lockdown nacional era e é, sem dúvida, medida de difícil execução. Mas devia ter realizado constantes reuniões com governadores e representantes dos prefeitos para debater a necessidade, ou não, de ordenar toques de recolher, ou até mesmo de lockdowns temporários locais, municipais, estaduais e regionais para deter a proliferação e a circulação do coronavírus.
No plano econômico, com a presença do ministro da Economia, devia ter realizado reuniões com os presidentes do Senado e da Câmara Federal; com governadores e prefeitos, e com representantes dos setores empresariais e de trabalhadores para, em conjunto, debater o enfrentamento da paralisia econômica decorrente da pandemia, adotando as medidas políticas adequadas e oportunas. Com isso, ter-se-ia evitado a falência de empresas, especialmente das pequenas e médias; a demissão em massa de trabalhadores e a fome e a miséria dos mais vulneráveis, notadamente dos trabalhadores informais. Em agosto de 2020, devia ter comprado as 70 milhões de doses de vacina oferecidas pela Pfizer BioNTech e se comprometido em adquirir outras vacinas, da Moderna, da Jansen etc. Devia ter aprofundado as relações diplomáticas e comerciais com a China, a fim de aumentar a importação do IFA (insumo farmacêutico ativo), possibilitando que o Butantã e a Fiocruz produzissem 300 milhões ou mais doses de vacina, em um curto espaço de tempo.
A apuração da gravidade e da extensão dos atos praticados ou deixados de praticar, por Bolsonaro e seu governo, em relação à pandemia da covid-19, é o objeto central da CPI. Com os depoimentos iniciais desta semana – de Mandetta, Teich e Queiroga -, bastante esclarecedores, outros se seguirão. Além dos depoimentos, haverá quebra de sigilos pessoais e empresariais, telefônicos e outros. Por tudo isso, a CPI traz um forte sopro de esperança de que as milhares de mortes pela covid, especialmente as evitáveis, não devem e não podem ficar impunes.
(Foto: Pedro França/Agência Senado)