“Vou deixar a Folha no portão”

Por Júlio Cesar Rodrigues:

A casa do meu pai fica no caminho da minha. Normalmente passo por lá à noitinha, depois do trabalho, para conversarmos. Mas também para ler a Folha de S. Paulo. Confesso: aproprio-me da condição dele de assinante, sem pagar por outra assinatura, não por avareza, asseguro, mas pelo prazer de comentarmos juntos os melhores textos do dia.

“Não perca o Ruy Castro”, ele recomenda costumeiramente, talvez por se identificar com o cronista que, como ele, nunca usou um celular. “Hoje o Zé Simão está demais”, diz sempre. Não é raro eu levar o jornal para casa e encontrar anotações do meu pai. “Esse cara nunca prestou”, assinalou ele, certa vez, com um “x” ao lado de uma entrevista com um conhecido político brasileiro.

Nossa ligação com a Folha é antiga. Quando passei no vestibular para direito, há mais de trinta anos, me mudei para Maringá-PR e fui procurar emprego. Queria trabalhar num jornal, pois o jornalismo era a minha paixão e o direito, na época, era apenas uma paterna recomendação.

Com a pequena experiência de aprendiz de redator na Revista da Cidade, editada em Arapongas-PR e fundada por Dionysio Neto (meu pai) e Paulo Gomes em 1964, cheguei em Maringá aos dezessete anos pensando que já era gente e querendo trabalhar simplesmente no maior jornal local, o já extinto “O Diário do Norte do Paraná”.

Com a entrevista de emprego marcada, passei numa banca, comprei a edição do dia da Folha de São Paulo, coloquei-a debaixo do braço, para parecer intelectual, e fui falar com o editor-chefe do “O Diário”.

Ângelo Rigon, o editor, olhou para este pequeno e então jovem cidadão, careca pelo trote do vestibular, e não deu a menor bola. Pediu para esperar. E esperei por horas.

Quando resolveu me atender, por não mais que dois minutos, já no momento crítico do fechamento do jornal, Rigon apenas perguntou o que eu lia. Respondi: Clovis Rossi, Gilberto Dimenstein e Carlos Heitor Cony, os articulistas que normalmente figuravam na página dois da Folha. Não precisei dizer mais nada. “Você começa amanhã”, disse ele.

Eu não tinha diploma na área e precisava aprender a escrever na marra. Buscava inspiração diariamente nos textos da Folha, onde tentava decifrar o que era um “lead” e como se chegava a um bom título. Fui reproduzindo a técnica no meu modesto dia a dia de repórter do interior.

Lá no velho “O Diário”, certo dia um outro repórter encontrou na capa da Folha um erro de grafia que poderia ser comum aos mortais, mas não ao jornal que idolatrávamos. Ao falar de uma greve, a Folha escreveu que os trabalhadores iriam “paralizar” (com “z” mesmo) as atividades de uma empresa. O repórter, pretendendo confrontar o nosso sempre exigente editor, bradou aos colegas do jornal: “Tão vendo. Não é só ‘nóis’ que erra”. A gafe derrubou a redação em gargalhada.

O tempo passou. A Folha de S. Paulocompletou 100 anos e a Revista da Cidade, onde tudo começou para mim, vai comemorar seus 57 em agosto, uma marca inédita para uma publicação mensal do interior do Brasil. Seguindo o conselho paterno, tornei-me advogado, também apaixonado por esse ofício.

Quando saio do escritório muito tarde, o cansaço me faz ligar ao meu pai apenas para dizer que irei direto para casa. “Vou deixar a Folha no portão”, ele responde, assegurando-se que eu passe por lá e não perca nada do jornal que ajudou a me formar para a vida.


­(*) Júlio Cesar Rodrigues é advogado em Arapongas-PR