Nossos miseráveis

Ela tinha os olhos apertados, quase fechados, com uma olheira explícita. Aparentava 20 anos. Parou na minha frente. Perguntou se queria fazer um programa. A aparência, o traje e o lugar a denunciavam. Era uma usuária de crack. Meu breve silêncio pareceu incomodá-la. Respondi que estava com pressa. Ela retrucou. “Vamos, sim, eu chupo gostosamente”. Disse assim mesmo, adverbialmente.
Repeti que não podia. Fui me afastando. Ela tornou. “Então, me arruma 5 reais, preciso levar comida pro meu filho”. Não costumo dar dinheiro a quem pede na rua. Sempre que possível, ofereço um salgado ou mesmo uma refeição. Mas não havia bares e restaurantes por ali, então, lhe dei o dinheiro. Ela saiu a passos largos em direção a um grupo de jovens iguais a ela reunidos numa pracinha.
No mesmo dia, em outra cidade, um rapaz deitado no canto de uma calçada. Aproximei-me. Cumprimentei-o. Ele respondeu. Perguntei de onde era. Citou o bairro em que morava. Disse que era dependente de álcool. Ao redor dele, havia três garrafas plásticas de cachaça; uma pelo meio de líquido. “Olhe, moço, a situação está um tédio, se eu ficar sem beber minha cabeça explode. É só desgraça pra todo lado”, afirmou, se aquietando após o desabafo.
Uma sorveteria. Fazia tempo que eu não consumia um sorvete. Entrei. Pedi um picolé de fruta. Prefiro aos de leite. Se bem que todos têm leite na composição. Não lembro se li ou ouvi tal explicação de um expert em sorvete. Eu degustava um de limão. De repente, três indiozinhos quase nus e sujos, me cercaram.
Um deles pediu algo. Não entendi se era sorvete ou dinheiro. Mas me fiz entender que era sorvete. Perguntei se queriam. Sinalizaram com a cabeça que sim. Mandei o atendente dar um picolé para cada um. Ele, de cara amarrada, atendeu. Percebi que não gostou. Em seguida, ele foi até uma mulher no canto no balcão e comentou. Pelo movimento dos lábios, reprovava minha atitude.
Os indiozinhos saíram saltitantes com os picolés. Ao menos os fiz felizes por um instante. Embora o problema deles permaneça.
Eles, a mulher, que oferecia programa sexual, e o homem devorado pelo álcool – escancaram nossos miseráveis. Talvez não tenham o estigma daqueles sagrados na obra de Victor Hugo. Numa França revolucionária e carcomida pela crise social. Mas estão aí e não são poucos. Nas ruas e avenidas, o drama de cada um.
(*) Donizete Oliveira, jornalista e historiador
(Foto ilustrativa: Donizete Oliveira)
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