Era cego, agora vejo

Ele nunca tinha visto a luz do sol, da lua ou das estrelas. A bem da verdade, nunca tinha visto luz alguma, pois por todo o tempo viveu na escuridão. Gerado e desenvolvido na escuridão do útero materno, na escuridão mesmo depois nascido. Tinha os outros sentidos ativos e bem afiados, mas lhe faltava o da visão. Nunca soube o que era enxergar, pois jamais havia tido o privilégio de definir algo ou alguém a partir da compreensão vinda pela visão.

Nascido cego, da cegueira se fez cativo. Algumas pessoas procuravam razão para explicar a causa do mal que o afligia, confinando-o num cubículo escuro. Queriam explicar, já que não podiam resolver o problema.

Chegavam a imputar culpa aos seus pais ou a ele mesmo, e o faziam pressionados por um viés eminentemente religioso, atribuindo a causa da cegueira ao pecado. Quem pecou para que essa criatura nada possa ver? Teriam sido seus pais? Teria sido ele mesmo?

Certo dia, enquanto imerso em sua solidão, o cego não percebeu que alguém se aproximava dele. Nem mesmo podia imaginar que brevemente seus olhos seriam tocados, e que algo inusitado iria acontecer. Quando, finalmente, seus olhos são atingidos pelo estranho, o cego instintivamente recua a cabeça como que para se defender e evitar aquilo que lhe parecia mais uma agressão do que um ato de bondade.

Meio assustado percebe que seus olhos recebem não só uma pressão, como também alguma coisa que neles gruda. É lodo. Isto mesmo. Ambos os olhos foram untados com lodo. Se conhecesse aquilo teria se sentido mal. Mas como nunca tinha visto lodo e nem sabia como era, a repugnância não lhe acudiu os sentidos quando os olhos foram enlameados.

Com os olhos encobertos pela substância, o pobre homem ouve uma palavra de ordem para ir se lavar. Quem o havia sujado agora ordenava que fosse se limpar. Estranho. As apalpadelas pelas ruas estreitas e mal calçadas da cidade, o sofrido homem cego vai em direção ao local indicado para a purificação. Não entende nada do que se passa, mas vai.

Chegando ao lugar definindo se abaixa, faz as mãos em concha, enche de água e esfrega bem os olhos. Ao se lavar como lhe foi recomendado, algo estranho lhe acontece. A luz começa a incomodá-lo, como é próprio de quem saiu de uma caverna escura, depois de passar confinado nela por longo tempo e dá de cara com a luz do sol. Com os olhos entreabertos, ainda trêmulos, vê a luz; vê as coisas; vê as pessoas; vê a si mesmo.

O espanto tomou do seu coração. Seus próprios vizinhos se puseram em estado de grande admiração e diziam surpresos: “Não é este aquele que estava assentado e mendigava?” Sim, além de cego, ainda era um mendigo. Olhando firmemente para o cego que agora via alguns diziam: “Sim, é ele mesmo.” Eu o reconheço. Não tenho dúvida. Outros, mais céticos, não ousavam afirmar. Balançavam a cabeça e soltavam sua dúvida: “parece-se com ele, mas não temos certeza.”

Diante de uma plateia atônica e dividida, o cego que agora a todos via, dizia: “gente, sou eu.” Sim, fui curado. Agora eu me vejo e vejo também a todos vocês. Os incrédulos continuavam a indagar: “Como se te abriram os olhos?”. E continuavam: já que você diz ser aquele cego de nascença que mendigava assentado na rua, diga então quem te abriu os olhos? Quem te vez ver a luz e através dela todos nós? Afinal, durante todo o tempo em que foi cego, o pobre homem não somente não via seus amigos, se é que os tinha, como não via seus vizinhos e nem a si mesmo.

Na cidade nunca havia ocorrido e nem se havia ouvido que em outro lugar do mundo, um cego de nascença ter sido curado de sua cegueira na fase adulta. Quando o cego relatou os detalhes da cura, a saber, quem o havia curado e como foi o processo, os curiosos irromperam em gritos: “Onde está ele?” Pressionado pelo alvoroço da multidão que se formava ao seu redor, sua alegria misturada de medo o levou a respondeu: “Não sei.”

Inconformados com a informação negativa do cego que agora via os vizinhos e curiosos que agregavam ao grupo, tomaram uma decisão: “vamos leva-lo às nossas autoridades para ser interrogado”. Até parece que o homem que havia sido curado tinha cometido um crime pelo milagre recebido.

O problema da revolta geral é que era sábado o dia em que havia acontecido a cura, e neste dia, como era do costume religioso, era proibido fazer qualquer coisa. Qualquer coisa? Inclusive um benefício? Possivelmente. Até mesmo curar um cego? Pelo jeito sim.

Chegaram, enfim, às autoridades a que submeteriam o caso. O cego que agora via seria interrogado. Sem rodeio algum a primeira pergunta foi logo no ponto central da questão: “Como foi que você ganhou a vista? Bem, respondeu o interrogado: “Me pôs lodo sobre os olhos, lavei-me e vejo.” Só isto? Nada mais? Não aplicou remédio? Não fez reza, oração ou prece alguma? “Nada”, disse. Só lodo e água.

Diante do ineditismo da cura, os inquisidores responderam: “Quem fez isto não é de Deus”. E acrescentaram: E não é de Deus não porque curou de um modo não convencional, mas sim porque não guarda o sábado. Ou seja, ele fez um trabalho num dia que é reservado para o descanso sagrado. Mas entre os próprios inquisidores, espantados com o ocorrido, teve um grupo que levantou um questionamento: “como pode um homem pecador fazer tais sinais?”.

As autoridades, portanto, estavam divididas entre si, sendo umas que apontavam que a cura fora feita por um homem que não era de Deus, e outras que duvidavam de que pudesse ter sido feita por um homem contrário a Deus. O interrogatório continuou, com as autoridades se voltando diretamente para o cego que agora via, indagando: “Tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?” Sob pressão e mediante indagação tão surpreendente, o cego que agora via respondeu: “Ele é profeta.”

Insatisfeitos com o que haviam obtido de informações até aquele momento, resolveram questionar seus pais. Pegaram os pais e colocaram o rapaz diante deles, fazendo a primeira pergunta: “Ele é teu filho”? Sim, responderam sem titubear. E continuaram: “Como vocês diziam que ele tinha nascido cego? “Ora, disseram os pais, porque desde o nascimento e até a pouco tempo nunca viu. Mas se vocês são tão categóricos em afirmar que ele nasceu cego, como está vendo agora? Os pais não titubearam em afirmar:

Sabemos que este é o nosso filho, e que nasceu cego, mas daí por diante, não sabemos mais nada. Aliás, até nós estamos pasmos e surpresos com o acontecido. E prosseguiram: “como agora vê, não sabemos; ou quem lhe tenha aberto os olhos, não sabemos.” Como se sentiam pressionados para revelarem o que não sabiam, os pais acrescentaram: “Ele tem idade suficiente para responder. Perguntem como foi e saberá esclarecer. Deixem que fale tudo e certamente terá condições de esclarecer.” Como os pais passaram o problema para o próprio filho falar sobre quem o tinha curado, chamaram o cego que agora via para ser questionado novamente.

A primeira coisa que fizeram antes mesmo de interrogar o homem foi afirmar: “o homem que te curou é pecador”. Na verdade, nem sabiam quem era e já o rotularam de pecador, pelo simples fato de fazer algo de bom num dia de sábado.

Diante de tão abrupta acusação feita contra aquele que o havia beneficiado com a cura de sua cegueira, o cego que agora via respondeu: “Se é pecador, não sei; uma coisa sei, é que, havendo eu sido cego, agora vejo (João 9.25)”.

Sabendo que o cego que tinha vista tinha sido expulso do local para onde fora levado para a inquisição, o homem que o havia curado logo acercou-se do cego que agora via e lhe perguntou: “Crês tu no Filho de Deus?” (Jo 9.35) Perplexo com a indagação que lhe fora feita, o cego que agora via respondeu: “Quem é ele, Senhor, para que nele creia?” Ao que lhe respondeu o perguntador: “Tu já o tens visto, e é aquele que fala contigo.” Ao que respondeu o cego que agora via: “Creio, Senhor. E o adorou.” (Jo 9.38). Diante de tal confissão do cego que agora via o homem que o havia curado acrescentou: “Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem sejam cegos.”

A história acima está registrada na Bíblia (João 9) e, de alguma forma, retrata o processo de salvação hoje do pecador. Todo pecador é, espiritualmente falando, um cego e como tal incapacidade de ver a Cristo como Cristo é. Como cego espiritual, o pecador não pode ir a Jesus, sem que Jesus primeiramente vá até ele. Quando Jesus vai se encontrar com o pecador, a primeira coisa que Ele faz é curá-lo de sua cegueira espiritual para que ele possa ver a Cristo. Ao ter condições de ver a Cristo, só aí o pecador consegue crer nele. E ao ver e crer em Cristo, o pecador passa a ser um adorador verdadeiro.

Jesus mesmo disse ser a luz, que vinda ao mundo ilumina todo o homem (João 1.9). Só os que foram iluminados por Cristo veem a Cristo e nele creem. Os religiosos, por que se negam a receber a luz de Cristo, continuam cegos, não tendo a mínima condição de ver e crer em Cristo. Somente quando a luz de Cristo iluminar seus olhos, é que você poderá dizer como o cego disse: “Eu era cego – agora vejo”.


(*) Lutero Paiva Pereira é advogado em Maringá

(Ilustração: Arte s/ foto de Anna Shvets)