A garantia de presunção de inocência não deve ser relativa

O título é alvo das discussões mais acirradas e no calor das emoções por vezes a razão fica pelo caminho, inclusive entre os profissionais do direito. Não se trata de texto escrito com paixão partidária. A ideia é tentar explicar algo complexo de forma simples, sem usar o “juridiquês”.

O ex-presidente Lula teve contra si cerca de duas dezenas de ações judiciais e inquéritos. Em algumas dessas ações ele foi absolvido. Ou seja, existiram processos que ao final chegaram a sentenças. Nessas, um juiz o declarou inocente.

Por outro lado, outras ações que recaiam sobre ele foram anuladas, arquivadas. Nesse caso, diferente daquelas em que ele foi absolvido, não houve uma sentença condenatória.  Num linguajar simples, essas ações deixaram de existir. No caso dos inquéritos, esses não passaram da fase de investigação. Ou seja, sequer evoluíram para uma ação que levaria a uma sentença. Os motivos que levaram a isso foram em maior parte: a inexistência de provas, a parcialidade do juiz e a incompetência de um juízo. Tentando evitar um texto longo, detalho essas três causas noutro momento, em especial a “parcialidade” do juiz, reconhecida em vários desses processos.

Pois bem. Nesse período de polarização pré-eleitoral em que as paixões partidárias estão à flor da pele e a razão passa ao longe, tenta-se pregar a ideia de que o ex-presidente não seria inocente, baseando-se naquelas ações que foram anuladas ou arquivadas. Para firmar essa falsa ideia, a frase usada é “Nesses outros processos ele não foi inocentado, não chegaram ao final, então ele não é inocente”. O que não é verdade. Explico.

Nossa Constituição nasceu após um longo período de ditadura militar. Durante 21 anos direitos civis individuais e coletivos foram restringidos. Ou seja, não foi por acaso que quando promulgada em 1988 a Constituição Federal destinou um capítulo inteiro à garantia dos direitos civis individuais e coletivos, denominado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. No artigo 5º inciso LVII diz que:

Art. 5º (…) inciso LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (…)

É o chamado princípio da presunção de inocência, princípio fundamental ao Estado Democrático de Direito e uma tentativa de limitar o poder punitivo do Estado, por vezes desmedido. Significa dizer que não apenas o ex-presidente, mas toda e qualquer pessoa que vive nesse país, só pode ser considerada culpada após ter contra si uma sentença penal condenatória transitada em julgado (que não caiba mais recurso). O ex-presidente não possui sentenças condenatórias. Ao contrário, como já dito, teve sentenças absolutórias em alguns processos e outros foram anulados ou arquivados devido a inexistência de provas, a parcialidade do juiz e a incompetência de um juízo. Esse é o fato.

A questão é que, o fato de alguns processos terem sido anulados ou encerrados não retira dele (nem de qualquer pessoa) a condição de inocência, não torna a pessoa culpada. A Constituição garante a todos a presunção de inocência e não a presunção de culpa.

Finalizando, a lei deve ser aplicada a todos sem distinção. A garantia à presunção de inocência não deve ser relativizada, sendo invocada não apenas àqueles que queremos bem, mas também para àqueles que queremos distância, independente de preferências políticas ou partidárias. Defender essa garantia é defender o próprio Estado Democrático de Direito. Relativizá-la é fruto de uma cultura autoritária e de desrespeito à direitos fundamentais.


(*) Paulo Vidigal é advogado em Maringá. Publicado originalmente aqui).

(Foto: Kindel Media)