“Engolindo a resposta com o último trago”

Como tem feito todos os dias depois que perdeu o emprego, Zé levanta cedo e sai com seu carrinho procurando latinhas e papelão para ganhar algum.  No trânsito, seu carrinho torna as buzinas impacientes, mas ele continua.

O dia é duro, sol queimando. Encosta o carrinho em frente à um prédio. Sabe como é, nesses contêineres o pessoal sempre joga latinhas e papelão, diz.  No fim do dia, conseguiu pouca coisa. Pouca latinha e pouco papelão significam pouco dinheiro. Passa no mercadinho e compra o que o dinheiro deu para comprar. E foi pouco.

Antes de chegar em casa, com o pouco que conseguiu comprar dividido em duas sacolas, para no boteco na esquina de casa. Pede uma cachaça e a toma devagar. Quem sabe alivie as dores do corpo, pensa.

No balcão, conversa com alguém. Papo de boteco vai de quanto seu time está ruim, como os preços subiram no supermercado e pergunta por que a vida está tão dura. Afinal, ele não queria muito. “Um emprego registrado seria bom”, pois acredita que poderia pagar o aluguel atrasado ou, ir no mercado e fazer uma “compra boa” todo mês. O colega de prosa responde algo como “foi falta de sorte” ou que “Deus quis assim”. Zé engole a resposta com o último trago da cachaça. Se despede e vai para casa.

Ao se deitar sente a dor no corpo que a cachaça não deu conta de tirar. Faz uma prece e pede que amanhã seja melhor, que ele consiga colher mais latinhas, mais papelão e quem sabe conseguir um dinheiro melhor.

Há de chegar o dia que cesse a injustiça. E será acompanhado do fim da vergonhosa desigualdade social existente nesse país e que muitos preferem não enxergar. Boa noite, Zé. Que os “amanhãs” sejam melhores do que hoje.


(*) Paulo Vidigal é advogado em Maringá. Publicado originalmente aqui.

(Foto: Pixabay)