Outorga: o novo imposto

A máquina pública é insaciável na hora de arrecadar, mas não tão diligente para reduzir seus gastos

Por José Carlos Martins:

A máquina pública é insaciável na hora de arrecadar, mas não tão diligente para reduzir seus gastos. Assim, de tempos em tempos, inventa novas formas de arrecadação. E muitas vezes o novo imposto vem embrulhado com uma nomenclatura diferenciada, sem chamar de imposto, para suavizar o impacto da nova medida – como contribuição, substituição tributária, entre tantos outros por aí que, apesar do eufemismo, têm somente um objetivo: arrecadar mais.1 de 1 José Carlos Martins, presidente da CBIC — Foto: Divulgação

Nos últimos anos, de forma criativa e discreta, inventou-se mais um imposto: a outorga para autorizar serviços públicos.

A outorga é o valor pago pelas empresas para serem concessionárias de um determinado serviço durante um período. Uma espécie de antecipação paga ao Estado do montante que o licitante vai arrecadar no futuro. Os leilões de rodovias, portos, aeroportos, infraestrutura urbana estão seguindo esse padrão de desembolsar um valor logo na entrada. Contudo, logicamente as empresas não absorvem este custo. A tendência é repassar ao valor que deverá ser pago pelo cidadão ao utilizar o serviço.

As concessões e as Parcerias Público-Privadas vieram para melhorar o dia a dia do cidadão, aumentar investimentos, gerar empregos e aprimorar a precária infraestrutura do nosso país. Tão precária que já assimilamos a ineficiência do Estado na área e entendemos – e concordamos com – a necessidade da gestão privada para prestar os serviços com mais eficiência. Ficamos resilientes em pagar mais por temas que já deveriam ser cobertos pelos impostos. E muitos tributos, por sinal! Em 2021 o brasileiro trabalhou 149 dias somente para pagar os impostos sobre a renda, patrimônio e consumo. Dinheiro que o Estado consome em suas entranhas e não devolve adequadamente para a população.

Voltando à outorga, um dos pontos mais relevantes que precisa ser debatido é o direcionamento do recurso arrecadado. De forma geral, essa verba acaba sendo destinada para o pagamento de dívidas do setor público, suprir folhas de pagamento e custeio da máquina.

A alternativa, no entanto, parece vir do Congresso Nacional. Por lá tramita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2021, que trata do reinvestimento de outorgas em infraestrutura. A PEC determina que pelo menos 70% dos recursos obtidos com outorgas onerosas que decorrerem de infraestruturas de transportes da União sejam aplicados no próprio setor.

O texto, já aprovado pelos senadores, ainda diz que a destinação desses recursos deve ser executada em até cinco anos após o recebimento dos valores de contrapartida das outorgas da União, amarrando um prazo para o reinvestimento. O texto segue para a Câmara dos Deputados.

Ou seja, o intuito da outorga deve sempre ser atrelado a novos investimentos, geração de empregos e melhoria da infraestrutura do país. Desta forma, teremos um círculo virtuoso e até uma maneira de redistribuição de renda. No entanto, no modelo atual, o recurso muitas vezes acaba sendo direcionado para pagamento de dívidas do setor público, suprir folhas de pagamento e custeio da máquina.

Vejamos alguns exemplos. Em Alagoas foi realizado um leilão recente. A concessão para levar água tratada e tratamento de esgoto à região resultou em R$ 1,65 bilhão em outorga para os cofres do estado. Então, questionamos: quem vai pagar essa conta? A parte mais frágil do processo: o usuário. Ou alguém está convencido de que o custo da outorga não será compensado e diluído no valor das tarifas?

Outro exemplo. A concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) rendeu R$ 23 bilhões em outorgas. Certamente a contratada não poderá arcar com esse valor sozinha, em uma única parcela. Paga o contribuinte, o usuário do serviço de saneamento – item tão essencial, mas tão raro da vida dos brasileiros. Esta montanha de dinheiro foi para pagar parte das dívidas do setor público, sequer foi usada para pagar débitos com fornecedores.

No Paraná, no processo de concessão do chamado “anel de integração” do estado, foi estabelecido um modelo considerando o valor do pedágio e a outorga. Contudo, houve um manifesto dos usuários que não aceitaram os valores das tarifas de pedágio – certamente encarecidas pelo valor da outorga diluído – e provocou uma revisão do modelo licitatório, com a redução de tarifas.

O valor economizado no Paraná é dinheiro no bolso da população, para os produtores que transportam seus produtos nas estradas, para a economia que terá maior competitividade. E não para tapar buraco da máquina pública.

Cito mais um efeito nocivo deste novo imposto que emerge sutilmente. Com os altos valores da outorga, a concorrência fica reduzida. Afinal, não são todos os grupos que possuem capacidade de participar de concorrências com um ágio tão elevado e que deve ser pago no ato para retornar ao longo de um contrato de 20 ou 30 anos.

Há pouco o país presenciou problemas com obras e grandes construtoras que se beneficiaram da concentração de mercado. Assistimos ao dinheiro público correr para lugares indevidos e não podemos correr o risco de repetir o erro no futuro.

A boa notícia é que existem diversas formas de reduzir este efeito e o Senado conseguiu desenhar uma delas. Agora é acompanhar e aguardar a sensibilidade dos deputados para que a população veja este recurso sendo revertido para melhorias nas cidades e sinta os benefícios chegando à porta de sua casa.

O fato é que o modelo atual não é razoável. É limitador para as empresas e caro para o cidadão. É um novo imposto semanticamente camuflado. E a consequência sempre bate no bolso da população, corroendo ainda mais os parcos recursos do brasileiro, aumentando o custo Brasil e perdendo eficiência da economia. Precisamos tomar outros caminhos.


(*) José Carlos Martins, formado na UFPR, é presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção. Publicado originalmente no Valor Econômico.

(Foto: Breno Esaki/CBIC)