Leite da vaca; café da mariquinha…

A mariquinha de madeira se tornou uma marca da nossa casa

De manhã, o cheiro tomava conta da casa. O pó de café, guardado numa lata vazia de querosene, ao ser aberta, exalava o aroma. Da cama eu sentia. Minha mãe acordava cedo para aprontá-lo. Dali a pouco, meu pai e meus irmãos saíam com as enxadas nas costas para mais um dia de labuta. No eito.

Minha mãe tinha uma mariquinha de madeira e um coador de pano, preto, por onde o café descia ao bule de alumínio. Um ritual de cada manhã que não podia faltar. Na parede da despensa, havia um moinho de café. Antigo. Nos acompanhou por muitos anos. Os grãos torrados eram colocados na boca dele e triturados pela moenda. Um barulho incessante. Minha mãe moendo café.

Mas tudo começava no torrador, num fogão improvisado no terreiro. Uma bola ao meio rodava cheia de grãos. Até torrar. Ao abrir aquela boca saía uma fumaça branca. O café estava torrado. Diziam que criança não podia ficar perto daquela fumaça, pegava resfriado, uma espécie de doença típica da roça. Qualquer avaria, a pessoa estava resfriada. Era friagem.

O café, a gente bebia numas xícaras de louça. Grandes e grossas. De vez em quando, eu derrubava uma no chão. Lá se foi minha xicrinha, reclamava a mãe. Nas compras por atacado, nos fins de ano, não podiam faltar as tais xícaras. Vinham acomodadas numa caixa de papelão que, após desembalada, servia de ninho para as galinhas chocarem.

A mariquinha de madeira se tornou uma marca da nossa casa. De tanto o café escorrer nela, ficou escura. Os coadores eram feitos de sacos vazios de açúcar. Minha irmã os costuravam na máquina de pedal. Uma Vigorelli. Eram brancos. Com o tempo, enegreciam. Num canto do terreiro era jogado o pó do café passado. Meu pai ajuntava e levava para horta. Excelente esterco. Dizia.
Misturar leite ao café era uma rotina. Chegavam os baldes cheios, que meu pai tirava de uma ou duas vacas. Eu corria com a xícara. Um cadinho de café no fundo. Por cima, o leite espumoso que vinha do curral. A gente nem fervia. Bebia do jeito que saía das tetas da vaca. Parecia mais saboroso. Só meu pai que não gostava. No lugar do café e do leite, ele bebia chá. De erva mate, erva doce, canela e outros.

O leite ficava numa lata de alumínio. O que azedava se transformava em coalhada. Consumida com açúcar cristal. Minha mãe preparava. Uma delícia. Uma vizinha ia mais longe e fazia potes de manteigas. Amarela, forte. Ela mandava um pote para a gente comer com os pães que saíam do forno a lenha, no canto do terreiro.

Broa de fubá também acompanhava as xícaras de café com leite. Assadas no forno a lenha, elas ficavam com o fundo queimado, mas deliciosas. Só tinha um problema. Com o tempo, endureciam. Viravam uma pedra. Um dia taquei uma broa daquelas na cabeça de um moleque da vizinhança. Numa arenga no pasto. Estava tentando roê-la, e ele veio tomar minha bola de plástico. Sem outra coisa para se defender, mandei a broa. Choro e confusão.

As garrafas térmicas levaram uma revolução à roça. Era comum encontrar um sujeito com uma embaixo do braço, rumando ao eito. A vida na roça sem o café e o leite não tinha sentido. Leite da vaca; café da mariquinha…


(*) Donizete Oliveira, jornalista e historiador. Foto: Arnaldo Silva/Conheça Minas

(*) Donizete Oliveira, jornalista e historiador