Nos tempos das tramelas

Em cada casinha de madeira havia uma ou duas

Um batido de pé, que vinha em direção à nossa casa. Eu cobria a cabeça, tremendo de medo de que aquilo iria arrebentar a porta. Meu pai roncava; minha mãe entregue a um sono pesado. Eu acordado. Cessavam os batidos de pé, iniciavam uns assobios agudos que dobravam a noite. Assombração, saci-pererê ou mesmo ladrões. A mãe dizia que eles fumavam maconha envolta da casa, não deixando a gente acordar. Garantia ela que matavam os donos adormecidos pela fumaça da erva tóxica e roubavam tudo.

As tramelas eram a segurança. Em cada casinha de madeira havia uma ou duas. Meu pai colava três, uma em cima, uma no meio e outra embaixo da porta. Assim não tinha quem arrombasse, dizia ele, que também confiava na cartucheira, guardada atrás da porta do quarto. Numa época, corria um boato que o bandido Diabo Loiro vivia pela roça arrombando casas. Conheci um vizinho nosso que, de tanto medo, amarrava um balde nas portas da cozinha e sala. Caso o bandido as arrombasse o barulho acordava a família.

O Diabo Loiro, que se chamava Geraldo Fonseca de Souza, por alguns anos virou lenda. Diziam que ele ficava de tocaia nas estradas. Caso alguma mulher passasse sozinha, ele atacava. Mas era apenas boato porque soube faz alguns anos que Diabo Loiro fora preso e condenado em 1958. Fiz uma reportagem dele e do seu parceiro do crime, o Carne Seca. Responsáveis por mortes e roubos foram julgados em Mandaguaçu e condenados a 30 anos de prisão. Ambos foram conduzidos à penitenciária estadual, em Curitiba.

Os fatos que narro aconteceram no começo da década de 1970, portanto, ele ainda estava preso. Mas havia muitas histórias na roça. As assombrações metiam medo. Na quaresma, período que antecede à Semana Santa, se falavam nos lobisomens, mula-sem-cabeça e almas penadas. Tinha a tradição de tocar matracas à noite, um instrumento de madeira que produzia um som batido. Rezavam-se as novenas e os terços. De vez em quando um padre era chamado para benzer algumas casas. Mesmo sem ocorrer qualquer coisa, ele rezava e jogava água benta nos quintais.

Mas as tramelas eram as vedetes da roça. Algumas bastante frágeis. Havia um preto, alto, magrelo, que chamavam de Zé Pernambuco. Ele morava numa casinha de chão batido, coberta de telhas de barro, aquelas famosas fabricadas numa cerâmica de Ourinhos (SP). A gente ria da porta da casa dele, fechada por uma tramela frágil, que mal a travava. Mas ele e a família nem ligavam. Em noites quentes, o Pernambuco amarrava a rede entre duas árvores e dormia no quintal. A gente passava lá, à noite, via ele pitando um cigarro de palha antes de pegar no sono. Que homem corajoso, murmurava eu. O cigarro dele se confundia com os vaga-lumes nas noites escuras.

Outro corajoso era o Joaquim Baiano, mais precavido do que o Zé Pernambuco, dispunha de uma lanterna, que chamavam de farolete. Ele ia quase todo dia à cidade e, ao voltar, à noite, se guiava pelo farolete. Lá no alto do morro, a gente via a luz. O pai dizia: é o Joaquim. Embalado por umas cachaças, a luz corria de um lado a outro da estrada, conforme as cambeteadas. Havia também o mais moderno: o Hélio, cuja bicicleta tinha um farol entre o guidão. Ele cortava chão à noite, naqueles tempos em que tudo era novidade, mas as tramelas eram comuns.


(*) Donizete Oliveira, jornalista e historiador

Foto: Reprodução/YouTube/Angela e Antonio