Maringá, 76 anos: O homem que comandava um “exército de machadeiros”

João Tenório Cavalcante retratado por Boh, artista plástico maringaense

João Tenório Cavalcante, ao contrário do seu xará, alagoano, que viveu no Rio de Janeiro e ganhou fama de justiceiro, era um empreiteiro maringaense que trabalhava com mais de mil peões na derrubada de mato e plantio de café e cereais no norte e noroeste do estado

A sucessão de batidas se assemelhava a um tiroteio. O som era produzido pelas machadadas. Centenas de homens derrubavam árvores. O “exército” de João Tenório Cavalcante em ação. Alguns o consideram o primeiro grande empresário de Maringá. Jorge Ferreira Duque Estrada, em seu livro “Terra crua”, diz que Tenório comandava 800 homens. Mas quem acompanha a história de Maringá, como o empresário Ênio Ferreira Lopes, filho do pioneiro Laércio Nickel Ferreira Lopes, garante que passavam de mil.   

Natalício Tenório Cavalcante de Albuquerque nasceu em Palmeira dos Índios (AL), em 1906, e morreu em 1987. O “Homem da Capa Preta” como ficara conhecido se transformou num mito. Carregava a tiracolo uma submetralhadora alemã, modelo MP-40, apelidada de Lurdinha. A fama de justiceiro o imortalizou no cinema e na literatura.

O João Tenório Cavalcante, de Maringá, no lugar da metralhadora, carregava um machado. Era um sujeito da lida, que se transformou num dos maiores desbravadores do norte e noroeste do Paraná. Dele, Duque Estrada escreveu: “Dirigia uma turma que chegou a integrar 800 homens – um verdadeiro exército de machadeiros – que liquidou o maior perobal do mundo, reduzindo grande parte a cinzas, nas queimadas que somavam léguas”.

Segundo o escritor, no meio do ano, a fumaça produzia uma “bruma seca” que dificultava os voos de teco-teco, comuns naquela época. No rastro de Tenório e seus homens centenas de empreiteiros punham fogo nas árvores derrubadas. Aproveitavam a madeira e preparavam o terreno para o plantio de café e cereais. Duque Estrada diz que “dava pena a chacina de gigantescos troncos, com séculos de existência, deitados inermes sobre a terra, com as entranhas a fervilhar em fogo”.

Pau-marfim, cedro, figueira, pau-d’alho, jaracatiá e muita peroba-rosa tombavam. Após a derrubada, os empreiteiros contratavam outro batalhão de homens para fazer as covas e o plantio do café. A peonada se acomodava em ranchos de palmitos, dormia em rede ou estrado de madeira em meio a um enxame de mosquitos. Duque Estrada conta que alguns se sucumbiam à picada de jararacas, cascáveis ou urutus. Morriam com a queda de algum galho na cabeça ou na ponta de uma faca resultado de um entrevero por um pedaço de fumo.

Após a derrubada, a queimada e o plantio do café, chegavam os colonos, que construíam casas de madeira. Em meio ao cafezal, eles plantavam feijão, arroz e milho. Criavam porcos, aves, cavalos, burros e mulas. Enquanto a colheita não chegava, recorriam ao fornecedor, dono de uma casa de secos e molhados. Em Maringá, havia as de Napoleão Moreira da Silva e Ângelo Planas.

Da esq. p/ a dir.: Radialista de Mandaguari (não identificado), Tenório Cavalcante, médico Lafayette Tourinho e Napoleão Moreira da Silva

Não se sabe muito do João Tenório Cavalcante maringaense. Pernambucano, casado, tinha seis filhos, ele chegou a Maringá na década de 1940. Nascido em Bom Conselho, a 282 quilômetros do Recife, foi um dos muitos que se aventuraram para o norte do Paraná. Em entrevista à RT, em 2017, o pioneiro Hélio Colicchio contou que Tenório fora um grande empreiteiro. “Na maioria das vezes, ele recebia fazendas de mata virgem e entregava ao proprietário com o café plantado”, declarou.

Dizem que Tenório plantou mais de 20 milhões de pés de café no norte e noroeste do Paraná. Lauro Fernandes Moreira, outro pioneiro que o conheceu, disse à RT que a fama de “cumpridor de compromisso” ajudava o pernambucano a fechar grandes empreitadas. “Era um sujeito acessível, de bom humor, que sabia lidar com os peões, o que lhe permitia entregar o serviço no prazo combinado”, afirmou.

Para Moreira, naquele tempo, a diplomacia ao lidar com as pessoas fazia diferença. A maioria dos peões vivia do trabalho, portanto, eram pessoas rústicas, que podiam arrumar uma encrenca por qualquer coisa. Tenório os tratava com respeito e cumpria o que prometia. “Era gente que trabalhava num dia para comer outro, portanto, não podia ficar receber”, conta. O pernambucano pagava sempre no dia combinado.   

Ao chegar a Maringá, Tenório comprou um hotel no Maringá Velho. Mas o comércio não era seu forte. Logo se desfez do negócio e começou a contratar empreitadas de mato para derrubar. Abriu fazendas em Maringá, nos arredores de Nova Esperança e Paranavaí. Ele tinha um caminhão e alugava outros para levar os contratados aos locais de trabalho.  

A maior parte das provisões para as empreitadas, Tenório comprava na Casa Napoleão. Raphael Colicchio, pai de Hélio Colicchio, e Napoleão Moreira da Silva eram donos do comércio. O filho, que trabalhava no balcão, disse à RT que a cada compra saía um caminhão abarrotado de mercadoria. Sacos de jabá, arroz, feijão, caixas de leite moça, machados, foices e trançadores. As mercadorias para alimentar centenas de homens seguiam para os acampamentos. 

Com o passar dos anos, Raphael comprou a parte de Napoleão na sociedade do armazém de secos e molhados. À RT,  Hélio contou que Tenório fazia do local uma espécie de escritório. A peonada chegava a Maringá à procura trabalho. Muitos iam lá, combinavam com ele e recebiam uma foice e um machado. No outro dia, pela manhã, subiam no caminhão e seguiam para derrubar mais uma mata.

Hélio contou que o bom humor lhe era peculiar. Nos momentos em que se reunia com os empregados para tomar cachaça, ele inventava alguma brincadeira. O pioneiro lembrou que num dia chuvoso, no Maringá Velho, havia um peão bem trajado, que ia à zona de prostituição. Tenório o chamou do outro lado da rua tomada de lama. O peão não quis ir, receoso de sujar a roupa. Ele foi buscá-lo. Colocou-o nas costas e, no meio da rua, soltou-o. O peão caiu de bunda no barro. “Quem viu se rachou de rir, mas o peão entendeu a brincadeira”, recordou.

Nos fins de semana, o lazer dos peões era pescar no Rio Ivaí. Eles partiam de Maringá e armavam barracas na beira do rio, onde havia peixe em abundância. “Uma vez fui junto, e fisgaram dourados, curimbatás e pintados”, acrescentou Moreira. Eles traziam um tanto de peixes e outra quantia era assada e consumida por lá mesmo, regada a cachaça.

O Edifício João Tenório Cavalcante, entre as avenidas 15 de Novembro e Duque de Caxias, em 2014
… e o mesmo edifício na década de 1950

Construção de edifício – A aventura de Tenório não se restringiu à derrubada de mato. Em Maringá, ele construiu, na década de 1950, o Edifício João Tenório Cavalcante, na esquina das Avenidas Duque de Caxias com 15 de Novembro. Na época, um dos mais modernos do Paraná. No local, funcionaram a Câmara Municipal, a Associação Comercial e Empresarial de Maringá (Acim) e a Biblioteca Municipal. Há alguns anos, o edifício foi reformado, modificando a estrutura e a fachada antigas.

De Maringá, Tenório mudou-se para Londrina, onde morreu. O site Maringá Histórica diz que “João Tenório Cavalcante, ainda pouco estudado, é um personagem conhecido por comandar as maiores derrubadas de mata pelo norte do Paraná. Suas passagens por Maringá se deram ao longo das décadas de 1940 e 1950. Pobre, acabou se transformando em um homem de negócio, detentor de grandes posses no norte do estado”.

Fotos: Donizete Oliveira/Museu da Bacia do Paraná/Gerência do Patrimônio Histórico