Um homem vivido e de vivências

Médico e escritor, Fahed Daher morreu hoje em Apucarana

Um sujeito de interminável boa prosa. A gente chegava. Ele sentado do outro lado de uma extensa mesa. Falava de tudo e de todos. Mas não um falar com segundas intenções, entrecortado de maldade. Falava do correr da vida. Coisas simples quase se transformavam num roteiro hollywoodiano. Um homem vivido e de vivências. Sorte de quem lhe desse ouvido. 

Eu fui um dos que se sentaram na cadeira do seu consultório. Após horas de prosa, trocava de lugar para ele examinar meus olhos. Em 1997, eu o procurei. Iniciara meu primeiro curso superior na Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari. A memorável Fafiman. Começara a estudar Letras. Meus olhos doíam ao se firmarem no quadro esverdeado. 

Cheguei lá ciente de que estava com algum problema nas vistas. Após discorrer, uma palavra que ele gostava de usar, sobre vários assuntos, sinalizou com a mão aberta esticada. Para eu me sentar na cadeira em que examinava os olhos dos pacientes. Mexeu, ajeitou, letras pequenas, grandes, perguntou como eu enxergava. Até que em um ímpeto pôs aqueles aparelhos ao lado e voltou a se sentar na mesa. Eu também me sentei. Mirrou nos meus olhos e tascou: “óculos, cumpadi!”.

Com 32 anos, eu nunca imaginara usar óculos de grau. Escreveu a receita. Antes de eu sair, contou mais um longo caso e declamou uma poesia. Escritor, poeta, escreveu dez livros. Ao sair, perguntei à secretária quanto era a consulta; ela respondeu que “o doutor não cobraria”. Agradeci com um misto de felicidade. Acabara de me mudar para Mandaguari. Estava com um dinheirinho contado no bolso. Precisava comprar uns livros exigidos pela faculdade.

Falo do amigo, o médico Fahed Daher, que morreu hoje, em Apucarana, aos 96 anos. Um homem que marcou um tempo. Daquelas pessoas, cada vez mais raras, que a gente procura para o prazer de uma prosa. O correr da vida não o impedia de olhar nos olhos do interlocutor e contar histórias. Boas histórias. Um liberal clássico, conservador até, mas recheado de bom conteúdo. Fã de Adam Smith e de Getúlio Vargas, não economiza elogios ao “pai do liberalismo” e ao “pai dos pobres”.

Poeta, não era raro ouvi-lo numa emissora de rádio nos confins do Brasil a declamar suas poesias. Não raro também era vê-lo no centro da cidade com roupa batida, de roça, na certa, chegara de seu sítio. Simplicidade lhe pertencia. Despojado e atencioso. Na década de 1980, por semana, num programa de televisão, comandado pelo Mauro Ticianelli, em Londrina, atendia, de graça, centenas de pessoas com uma consulta oftalmológica.

Candidato a deputado estadual não eleito, não fazia da profissão um trampolim político. Resolver o problema alheio o preenchia. A urnas rejeitá-lo, melhor. Assim, o tínhamos à disposição. Diferente do personagem de “Homem Comum”, de Philip Roth, Fahed não fazia da vida uma contenda interminável. Afável, mantinha aberto um leque feito uma flor do bem a capturar gentes dispostas a anular a pressa do cotidiano para um dedo de prosa. Gente assim, não morre. Encanta…

(Texto e foto: Donizete Oliveira)

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