Histórias de um rio Paranaense


Ameaçado pela destruição das matas ciliares e propostas de construções de pequenas usinas hidroelétricas em seu leito, o rio Ivaí, que percorre 685 quilômetros, cortando vários municípios do Paraná, sustenta dezenas de pescadores do Vale do Ivaí. O pescador Marildo Oliveira (foto) diz que, apesar da fiscalização, há danos ambientais no rio Ivaí, que ao fundo cruza a ponte do distrito de Porto Ubá
“Nas águas do Ivaí/Sempre pesco de canoa/Barranqueando rio acima/Batendo firme na proa”. Zico e Zeca interpretam os versos de Dino Franco e Adolfinho. A moda de viola “Pescador do Ivaí”, gravada em 1969, retrata um tempo em que as canoas retornavam do rio Ivaí abarrotadas de peixes. Mas a cena não é coisa do passado. Quem pesca em suas águas garante que peixes existem e sustentam ao menos 80 pescadores profissionais do Vale do Ivaí, dos quais 22 são de Porto Ubá, distrito de Lidianópolis.
Um rio paranaense. Nasce em Prudentópolis, no centro-sul do Paraná, e desagua no Rio Paraná, em Querência do Norte, noroeste do estado, percorrendo 685 quilômetros. Distrito de Porto Ubá, primeira parada. Um restaurante, nas margens da rodovia, serve porção de cascudo frito. Tempo de piracema. O cascudinho não é do Ivaí, mas acompanhado de cerveja gelada, vai bem. Sentamos embaixo de uma seringueira, cuja idade, pelo tamanho do tronco, calculam uns 80 anos.

Quem nos atende é a proprietária, Daiane Daniele Urbanas, 42 anos. O restaurante funciona desde 1989. Serve almoço e janta com o tradicional cascudo frito. Aos domingos, lasanha e pirão de peixe. Vez ou outra, música ao vivo. A família pretende ampliar o negócio. A construção de uma pousada está em curso. Ao lado, um pesque-pague se soma às opções de lazer. “A intenção é transformar isso aqui num ponto de referência turística regional”, diz Daiane.
Nos despedimos. Vamos à casa do presidente da Associação dos Pescadores do Porto Ubá. Cruzamos com alguns botecos. Um deles nos chama atenção: Último Gole. Quase no fim de uma rua mora Marildo Oliveira, 57 anos. Nascido no distrito, ele segue a profissão do pai, Maurício, que foi pescador por mais de 60 anos. Formado em pedagogia, com pós-graduação em meio ambiente. Na infância, brincava nas águas da margem do rio. “Conforme crescia fui aprendendo com o velho (pai) as manhas de lidar com a pesca” diz.

A atuação de Marildo não se resume à burocracia do cargo. Para ele, a luta maior é a preservação da mata ciliar, cuja medida legal é 100 metros, mas muitos agricultores não a respeitam. Alguns plantam soja quase dentro do rio. Na rodovia que liga os municípios pelos quais o rio corre, o cheiro de agrotóxico denuncia o problema. “A gente tem fiscalizado com ajuda da Patrulha Ambiental, Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e Ministério Público, mas não é possível coibir todos os abusos”, afirma.
No dizer dele, falta consciência. Se um agricultor não respeita a margem do rio, prejudica ele mesmo e vizinhos de propriedade. A reposição da floresta é lenta. Sem mata ciliar, que é o filtro natural, o rio fica vulnerável ao agrotóxico pulverizado nas lavouras. O veneno cai na água e mata os alevinos que vivem nas margens até se tornarem adultos. A conscientização das crianças é o caminho. Muitas vezes, os adultos têm dificuldades em compreender que é preciso proteger a natureza, mas os filhos pequenos podem ajudá-lo. “Temos trabalhado com as escolas da região para que discutam o tema em sala de aula”, diz.
Outra questão tira o sono dos pescadores. A construção das chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) no rio Ivaí. Grupos têm se manifestado com intenção de construí-las em alguns pontos do rio, represando-o. Marildo explica que o negócio afeta os pescadores que tiram o sustento do rio. Com as hidrelétricas, a vasão dele dependerá de barragens. “Aí, acabam nossos peixes porque eles não sobem pra reproduzir”, afirma, se referindo às escadas construídas para a subida na piracema, que seriam ineficazes.
Apesar dos problemas ambientais, a afirmação de que o rio Ivaí não tem mais peixes não passa de mito. Ao menos para Marildo, que garante existir Curimba, cascudo, lambari, piapara, pintado e até o cobiçado dourado, entre outras espécies. Eles se alimentam de materiais orgânicos fixados nas pedras, que existem em abundância no leito do Ivaí. Diferente, por exemplo, de rios do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, formados por areia. Sem alimento natural, os peixes abocanham com facilidade as iscas dos pescadores. Ele também rejeita repovoamentos com alevinos. “Esses peixes criados em laboratórios não contribuem com o rio, que tem sua estratégia natural de repovoamento”, garante.
Pescadores concordam que existem peixe no rio, mas a devastação preocupa. Gustavo Denez, 21 anos, conta que já fisgou um dourado de 14 quilos no Ivaí. A pesca da espécie está proibida, mas sempre a pescaram, garante ele. Angelino Moreira da Silva, 69 anos, que há 20 anos é pescador profissional, diz que a destruição de mata ciliar é antiga e contínua. “A gente espera que as autoridades atuem, e um dia esse problema acabe”, afirma. Maria Custódio da Silva, 52 anos, pescadora, completa: “Eu e meu marido tiramos nosso sustento do Ivaí, portanto, vemos com preocupação a construção de usinas e a falta de preservação de sua margem”.

Seguimos viagem. Grandes Rios na rota. Há cinco quilômetros daquela cidade está a Balsa do Marolo. O percurso, em estrada de chão, que leva a Jardim Alegre, é de 20 quilômetros. Na rota da balsa, uma forte correnteza. Quem a guia é um sujeito simpático que atende pelo nome de Zu Marolo Sena, 63 anos. Filho de Marolo Sena, primeiro barqueiro do local, diz que no auge do café, dezenas de automóveis e caminhões cruzavam o rio por dia. “Hoje, diminuiu, mas vamos tocando e atendendo aqueles que precisavam passar”, afirma.
Ele discorda de que o rio Ivaí está farto em peixes. Para o barqueiro, a redução deles é por causa da pesca predatória, inclusive, na piracema. Diz que a fiscalização atua, mas não dispõe de estrutura para autuar determinados pescadores ilegais. “Inclusive, donos de propriedades na beira do rio facilitam a entrada deles”, afirma. A 25 reais por carro, Zu Marolo segue na travessia. Mas tem gente que não precisa da balsa para cruzar o rio e tomar cerveja numa lanchonete do outro lado.

A façanha é do casal Adenilton Cândido Ferreira, 53 anos, e Lucineide Costa Dal Ben, 40 anos, que mora perto do rio. Às quintas e sextas; aos sábados e domingos, eles o atravessam a nado. Gastam oito minutos, mas podem cruzá-lo na metade do tempo, garantem. Ela usa um colete; ele sem camisa, diz que se criou nas margens do Rio Alonso, que passa por Grandes Rios. A experiência o encoraja. “Cresci nadando com a piazada, com pensamento firme, lá vamos, de braçada em braçada”, diz. O Vanderlei, que me serviu de motorista, na viagem, esconjura: “Eu, hein, jamais pularia aí dentro”. Nem eu.

Pescador do Ivaí
(Interpretação: Zico e Zeca – composição: Dino Franco e Adolfinho)
Nas águas do Ivaí
Sempre pesco de canoa
Barranqueando rio acima
Batendo firme na proa
Já fisguei até pintado
No rebojo da lagoa
Que pra tirá deu trabaio
Pra mais de cinco pessoa
Pra atravessá o rio de noite
Tenho uma lanterna boa
Ela arcança muitas braça
Mesmo com forte garoa
Vou remando silencioso
Quando eu chego nas taboa
Porque no poço das piaba
É que os dourado amontoa
Nas bocas de corredeira
Onde surubim amoa
Nas noites de Lua cheia
Dá peixe que até enjoa
Jogo a rede de arrastão
Água pesada recoa
Quando eu fisgo a piapara
Fico até sorrindo à toa
Quando o rio forma vazante
Bando de pato revoa
Também mato capivara
Quando meu cachorro acoa
Eu levo peixe pro rancho
E arguma caça boa
Assim eu vivo contente
Sou feliz com a patroa.
B
Texto e fotos Donizete Oliveira