A questão não é o banheiro

Do reitor esperamos um pouco mais de leitura sobre o tema com os votos de que aprenda com a vice-reitora uma consciência mais aberta. Dignidade e direitos fundamentais são inegociáveis,

Há pouco mais de 60 anos, precisamente em 2 de julho de 1964, o 36º presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, publicou a lei que encerrava a segregação racial institucionalizada do país. Após ávidas manifestações e luta de figuras como Rosa Parks, Martin Luther King e Bayard Rustin, a população afro-americana garantiu o marco dos direitos civis.

O período que antecede a lei, publicada pelo presidente democrata, foi marcada por intensa violência policial, bem como de violência institucional. A segregação, sobretudo nos estados do Sul, como Alabama, Mississípi, Tennessee e Carolina do Sul, obrigava a população afro-americana a utilizar lugares diferentes nos ônibus, frequentar escolas diferentes e a utilizar banheiros específicos a partir da Lei Jim Crow, do século XIX.

A história é implacável. Por mais que surremos os livros, tentemos recondicionar os aspectos e circunstâncias, sempre há recursos para podermos ler – com o distanciamento temporal – o que houve. Há época, a justificativa para a segregação, por exemplo, em banheiros, entre brancos e negros, era uma “biologia diferente”. Sabemos, passados mais de 60 anos, e partindo do pressuposto da boa índole de quem lê este artigo, que o real motivo era o racismo.

Mudam-se os tempos. Mudam-se os cenários. Os argumentos preconceituosos, frágeis que são e carentes de bom-senso, perduram pelos anos. O que nos leva à Universidade Estadual de Maringá, em pleno 2024. Novamente, o público conservador, valendo-se de novas pautas – às racistas da década de 50 nos Estados Unidos, já foram desidratadas e exauridas – busca novos modos de atentar contra direitos fundamentais, elegendo um novo alvo para seus ataques.

A justificativa, novamente, como um disco riscado, os aspectos biológicos. Vamos aos fatos e, por aqui, tentar explicar os absurdos que pairam sobre as reclamações e reivindicações da direita conservadora maringaense.

Reincidente no discurso, como já dito, aspectos biológicos. Alguns dos interlocutores – desses, alguns candidatos a vereador na cidade – dizem que pode haver abuso de mulheres nos banheiros devido às placas colocadas na porta dos banheiros femininos. O texto diz “Autoidentificação: sinta-se à vontade para utilizar o banheiro correspondente à sua identidade de gênero”. Sobre a afirmação conservadora, tenho duas hipóteses que gostaria de compartilhar.

A primeira é que há uma ilação de que mulheres trans serão abusadoras e isso coloca em risco a segurança física de mulheres cis, na UEM. Essa hipótese, além de imoral, é legalmente criminosa. É justificar e classificar um todo, sem prova alguma do fato.

A segunda é de que abusadores – que não são as mulheres trans -, se valeriam do discurso das placas para abusar de mulheres nos banheiros. Tal afirmação, além de grosseira, chega a ser pueril. Acreditar que um abusador deixará de abusar em detrimento de uma placa chega ser risível e não tem lastro no real – infelizmente, abusadores existem, independentemente das placas postas.

Ora, se o argumento não é o criminoso, como descrito acima, não há relação de causa e efeito na conduta da Universidade Estadual de Maringá, no ponto de vista da segurança das mulheres (Cis e Trans) nos banheiros femininos da UEM. O que há é um argumento – reforço e repito – que se calça em questões biológicas, em um falso preceito, como aconteceu durante a segregação racial nos Estados Unidos – para validar uma posição que é preconceituosa. E esse tipo de discurso não pode ser adotado de forma institucional.

Aliás, a violência constante e os ataques, verificamos justamente nas paredes da instituição. Ataques inúmeros contra as mulheres trans, que, caso saiam das paredes e tornem-se ações, coloca em risco a saúde física delas. É papel da universidade, como foi feito, garantir um bem-estar de toda comunidade acadêmica – o que inclui as mulheres trans. Promover os direitos fundamentais, civis e humanos, é obrigação da instituição.

Com profunda consternação, entretanto, acompanhamos o reitor da instituição, Ricardo Vanalli, relativizar a justa atuação feita no caso. As falas dele não são dignas de um reitor de uma universidade como a UEM e causa repulsa a uma instituição tão importante que tão rigorosamente batalhou pela igualdade e direitos fundamentais das pessoas.

Vanalli desassiste a comunidade LGBTQIA+ que frequenta a universidade e descredibiliza a atuação de sua vice-reitora, Profª Drª Gisele Mendes. Essa segunda, verdadeiramente empenhada no debate acadêmico com os docentes, servidores discentes, na promoção de uma universidade que respeita e cuida.

À Profª Gisele dedicamos nossos fervorosos agradecimentos pelo olhar sensível ao tema. Ao Prof. Vanalli esperamos um pouco mais de leitura sobre o tema com os votos de que aprenda com a vice-reitora uma consciência mais aberta. Dignidade e direitos fundamentais são inegociáveis, apesar da opinião pública e de qualquer pressão externa.

Já diria o pai do conservadorismo moderno, Edmund Burke, “Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada”. As falas maldosas dos conservadores de Instagram podem vir como navalhas. Mas o pensamento progressista, na garantia dos direitos fundamentais, sempre vai ter a pele firme como aço, na defesa da dignidade das pessoas. Apesar deles, venceremos.